Entre os séculos 16 e 17, Madri foi uma das cidades mais prósperas do planeta, quase uma "capital do mundo, centro de um "império onde o sol nunca se punha" — a cidade "paradoxal, singular e irrepetível", como definiu o escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte. Tanto poder e tanto dinheiro lotaram a cidade de belezas que ainda hoje encantam olhos de locais e viajantes.
A Casa de la Villa, foi inaugurada em 1692, como sede do governo
de Madri (Ayuntamiento). A cidade tinha se tornado a capital da Espanha em 1561 |
O Século de Ouro espanhol também foi marcado por uma produção artística irrepetível, como a pintura de Velázquez e Murillo e a literatura de Cervantes, o teatro de Lope de Vega e a poesia de Quevedo. Lá no alto, Êxtase de São Francisco de Assis, de Murillo. No centro, a abertura do D. Quixote gravada numa rua do Barrio de las Letras. Acima, o Monumento a Miguel de Cervantes na Plaza de España |
Mas é certo que esse tempo, também, que foi a expressão de um impulso épico que fez tanta gente a se lançar aos mares e ao desconhecido e que, nas artes, pariu uma safra (essa sim, irrepetível) com Cervantes, Lope, Quevedo, Molina e Calderón... As construções e recantos dessa época compõem a minha Madri preferida.
Um grande motivo pra passear pelo Centro Antigo de Madri é namorar as fachadas da área. Esta acima é da Pension del Peine, um hotel aberto em 1610 e até hoje em funcionamento |
Adoro as placas de rua no Centro Antigo de Madri |
Gabriel Molina, na Travessia de Arenal, uma das muitas livrarias encantadoras da Madri dos Áustrias |
Como é a Madri dos Áustrias
Calle del Cordón, uma das ruas mais antigas da cidade. Dizem que em um palácio desta rua San Isidro Labrador, padroeiro de Madri, trabalhou como criado |
O nome do bairro é uma referência a Beatriz Galindo, conhecida como La Latina por seu domínio desse idioma, uma mulher admirável que, em pleno Século 16, lecionou na prestigiada Universidade de Salamanca e notabilizou-se por seus conhecimentos filosóficos e de medicina.
La Latina foi professora de Isabel de Castela, outra mulher fundamental na história da Espanha — por falar nisso, um dos meus programas preferidos na Madri dos Áustrias é passar pela livraria feminista Mujeres de Madrid, que fica na vizinhança, e garimpar obras escritas por mulheres, sobre mulheres.
Libreria Mujeres de Madrid - Calle del Marqués Viudo de Pontejos nº 4. De segunda a sexta, das 10h às 14h e das 17h às 20h. Aos sábados, das 10:30 às 14h e das 17h às 20h.
Seis grandes arcos dão acesso à Plaza Mayor de Madri |
Estátua equestre de Felipe III, integrante da Casa dos Áustrias que reinou na Espanha de 1578 a 1621 |
A Plaza Mayor e a Calle de Toledo. Ao fundo, as torres da
Colegiata de San Isidro |
Roteiro pelo Século de Ouro em Madri
A Casa de la Panaderia, que se destaca com sua cor meio dourada
e pinturas decorativas, de 1619, abrigava repartições públicas e funcionava
como camarote real durante as cerimônias realizadas na praça. Também já foi
sede da Real Academia de Belas Artes de San Fernando, da Real Academia de
História, da Biblioteca e do Arquivo municipais.
Casa de la Panadería, sede de repartições públicas e camarote real |
Sob as arcadas da praça funcionam bares, restaurantes e lojas |
Na Madri dos Áustrias, a Plaza Mayor era o centro da vida social e política da cidade. Lá funcionava um mercado, eram realizadas corridas de touros, representações teatrais e autos de fé da Inquisição e execuções de condenados. Era também o local das celebrações de vitórias militares, datas religiosas e festas várias.
O intenso movimento turístico na Plaza Mayor muitas vezes
desconsidera o fato de que mora gente ali. As faixas reclamando do barulho já
fazem parte da paisagem da praça |
A única coisa que se deve evitar na Plaza Mayor é sucumbir aos restaurantes locais, geralmente caros e bem sofríveis.
⭐ Colegiata de San Isidro
O interior da Colegiata de San Isidro, erguida no
Século 17 pelos jesuítas |
Saindo da Plaza Mayor pelo Arco de Toledo, uma curta
caminhada leva à Colegiada de São Isidoro (Colegiata de San Isidro),
igreja consagrada ao padroeiro de Madri.
Com o pomposo título oficial de Real Basílica Colegiata de San Isidro, ela funcionou como Catedral de Madri até o final do Século 20, quando a Catedral de Almudena foi consagrada como tal. Sua construção foi concluída em 1664 (já no finalzinho do período dos Áustrias) pela Ordem dos Jesuítas.
A igreja é considerada um dos edifícios mais representativos da arquitetura de sua época.
Gosto muito do interior da igreja, em um barroco ainda contido. Apesar da importância histórica, a Colegiata não parece uma atração turística, frequentada por moradores das redondezas, geralmente mais idosos.
Por isso, é importante guardar discrição, não sair disparando fotos,
perturbando as orações. Em troca, o visitante vai se sentir quase de casa, em
um ambiente aconchegante, apesar de sua grandiosidade.
A Igreja de San Ginés tem uma história movimentadíssima e guarda uma obra-prima de El Greco |
⭐Igreja de San Ginés
No Século 17, a Igreja de San Ginés era o refúgio de todos os espadachins de
aluguel, prostitutas e batedores de carteira de Madri (um equivalente ao Patiode los Naranjos da Catedral de Sevilla, na mesma época).
O Pasadizo ("passagem") de San Ginés é famoso por suas banquinhas de livros usados e pela célebre chocolateria, aberta 24 horas |
Os fora da lei se beneficiavam do Direito de Santuário (garantia de não ser preso, quando se estava em solo sagrado) oferecido pela paróquia. Nas madrugadas, eles deixavam o abrigo e enxameavam pelo velho callejón (beco, viela) fazendo negócios e vendendo seus serviços.
Hoje, a área é muito pacata, com banquinhas de livros novos
e usados. Bem no cotovelo do Pasadizo fica a tradicionalíssima Chocolateria San Ginés, uma espécie de catedral do chocolate com churros, fundada no
final do Século 19. A parada aí é obrigatória.
Mas antes ou depois do chocolate, não deixe de visitar por dentro a Igreja
de San Ginés, onde uma preciosa obra de El Greco aguarda os visitantes em um
cantinho discreto.
Trata-se de A Purificação do Templo (também chamada de A
Expulsão dos Vendilhões do Templo), pintada pelo gênio do Maneirismo em 1609
(ele retratou essa cena do Novo Testamento outras seis vezes).
A Purificação do Templo (1609), de El Greco: vocês não imaginam minha felicidade de ter conseguido, finalmente, ficar cara a cara com esse quadro |
O culto a San Ginés em Madri é antigo — teria sido trazido pelo conquistador da cidade frente aos mouros, Raimundo de Borgonha, no Século 11 — e historiadores apontam que já havia um templo dedicado a esse santo francês (São Genésio, em português), desde o Século 12. Genésio foi bispo católico em Arles, no Século 4º, martirizado pelos romanos.
O altar-mor (lá no alto) e altares laterais da Igreja de San Ginés |
Até recentemente, San Ginés tinha um horário de visitas super restrito—apenas aos
sábados. Mas, para minha imensa felicidade, a encontrei aberta ao público em
plena segunda-feira, agora em maio de 2024. Imaginem a alegria, de poder,
finalmente, ver o quadro de El Greco cara a cara!
De Terça a sábado, das 10h às 14 e das 16h às 18:30.
Domingos e feriados, das 10h às 15. Recebe apenas visitas guiadas em espanhol, que
duram cerca de 60 minutos.
Ingresso: € 8
Conventos das Descalças Reais, fundado pela mãe de D.
Sebastião de Portugal |
O Monastério das Descalças Reais é a única atração paga deste roteiro pelo Século de Ouro. Mas entrou como sugestão neste roteiro por sua importância na Madri dos Áustrias.
A dificuldade para incluir Las Descalzas no roteiro é que o convento só pode ser visto em visitas guiadas, com horários muito restritos. Mas a coleção de obras de arte guardadas no convento, assim como a suntuosidade de seus salões, podem ser um grande atrativo.
A congregação do Convento das Descalças Reais é composta por freiras de clausura da ordem das clarissas.
Grande parte das preciosidades no acervo das Descalzas vem de doações das freiras que viveram lá—o convento era notório como local de recolhimento de mulheres da alta aristocracia, viúvas ou filhas sem dote, como a própria Juana de Áustria e sua tia Maria, imperatriz do Sacro Império Romano-Germânico.
A Casa de la Villa começou a ser construída em 1631 |
Seguindo a trilha do Século de Ouro, também é bacana dar uma passada pela Plaza de Villa, que foi o centro nervoso de Madri nos seu primeiros anos como capital, ainda no reinado de Felipe II.
A Torre e a Casa de Lujanes, apontada como a mais antiga ainda de pé em Madri |
Plaza de la Villa com a Casa de la Villa em primeiro plano e o Palácio de Cisneros ao fundo |
Três belos edifícios chamam a atenção na pequena praça: a Casa de la Villa (Século 17) antiga sede do Ayuntamiento (o governo local), a Casa de Cisneros (Século 16) o Palácio de los Lujanes (Século 15), apontado como uma das construções mais antigas da cidade ainda de pé em Madri.
Caminhar pela Madri dos Áustrias é tropeçar o tempo todo em
referências que eu curto. Calderón de la Barca viveu nesta casa, no nº 61 da
Calle Mayor |
Mesmo engolfado por construções mais altas, o Palácio de Santa Cruz ainda se destaca na paisagem de Madri |
Hoje, o Palácio é sede do Ministério da Relações Exteriores da Espanha.
O mosteiro era patrocinado por muitos poderosos da época, mas sua relevância para a vida social madrilenha não decorria de sua função religiosa, e sim do que acontecia do lado de fora, em suas escadarias, que abrigavam o mais importante Mentidero de Madri.
No Século 17, o Facebook era ao vivo e funcionava na Porta
do Sol |
No alto, a maquete do Mosteiro de San Felipe. A placa na Porta do sol recorda seu mentidero, "onde as notícias circulavam antes mesmo dos fatos acontecerem" |
Só é Ano Novo em Madri quando aquele relógio lá no alto soa as 12 badaladas |
A Porta do Sol tem alguns dos mais conhecidos cartões postais de Madri, como a estátua O Urso e o Madronheiro e o outdoor de Tio Pepe |
Hoje, a construção mais famosa da Porta do Sol é a Casa de Correos, uma das imagens mais reconhecíveis de Madri, com seu famoso relógio que marca as badaladas do Ano Novo. Outros cartões postais muito famosos da cidade também estão na Porta do Sol: o outdoor do jerez Tio Pepe e a estátua do Urso e o Madronheiro, árvore símbolo da cidade.
⭐ Casa Museu de Lope de Vega
Museu Casa de Lope de Vega, no Barrio de las Letras |
Na alta estação turística, é recomendável fazer reserva para ver a Casa de Lope de Vega. Permite apenas visitas guiadas em espanhol, inglês e francês, iniciadas a cada meia hora e com duração de 45 minutos (a última começa às 14 horas). Os grupos têm no máximo 10 visitantes. Para reservar, ligue para 91 429 92 16 ou mande um fax para 91 429 26 01.
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O ponto alto do meu último passeio pelo Século de Ouro foi a visita à Casa Museu de Lope de Vega. Lope é considerado o grande precursor da comédia espanhola e vivia em uma huerta (uma espécie de chácara) em uma região que, no Século 17, ficava afastada do Centro de Madri.
Hoje, a área é o Barrio de las Letras (Bairro das Letras), no caminho entre a Porta do Sol e o Passeio do Prado, e que ganhou este nome pela profusão de escritores geniais que viveram lá (Cervantes e Quevedo, só para citar mais dois).
Veja também esse roteiro muito legal: Um passeio no Barrio de las Letras
Lope de Vega é um personagem interessantíssimo. Dedicou-se com raro brilho a praticamente todos os gêneros literários, escreveu mais de 1.500 peças de teatro e era um pop star do Século de Ouro. Era um tremendo namorador, mas ordenou-se sacerdote. Era paparicado pelos poderosos, mas amargou um exílio. Foi soldado, intelectual e mundano.
A Casa de Lope sofreu algumas alterações ao longo do tempo, mas ainda conta muito sobre a história de seu ilustre morador e sobre o modo de vida do Século 17.
A visita guiada é uma viagem deliciosa por momentos grandiosos e por peculiaridades domésticas daquele tempo.
Os ambientes têm mobiliário e objetos de época (naturalmente, não são os originais que pertenceram a Lope), que são percorridos enquanto a guia vai contando casos e contextualizando-os na História da Espanha. Adorei!
Leia também: Casas-Museus, a vida cotidiana de gente muito especial
Índice com todos os posts sobre museus e sítios arqueológicos publicados aqui na Fragata
A Cava Baja é ligada à Plaza Mayor pelo mais famoso arco da praça, o de Cuchilleros |
Talvez se ela fosse ainda a capital daquele império, não me despertasse essa ternura — sou daquelas que torce para os índios, mesmo que o mocinho seja Gary Cooper.
Acho que quem me toca, mesmo é o povo madrileño, sempre alijado do esplendor, mas que, na hora H, foi quem escreveu as partes mais bonitas da história, como no levante de 1808, contra as tropas napoleônicas, e na resistência obstinada e quase eufórica da Guerra Civil. Madrid, te amo!
Um guia para o Século de Ouro em Madri
Além de listar e descrever os principais monumentos da Madri dos Áustrias, o autor oferece todo um contexto histórico pelos lugares frequentados pelo famoso personagem da série de livros de Arturo Pérez-Reverte (sim, sou fã assumida do capitão, apesar de implicar com as posições políticas de seu autor).
Alatriste é um soldado pobre alistado na poderosa infantaria espanhola do Século 17, os famosos Tércios, que foi uma das grandes responsáveis pela manutenção do poderio do "império onde o sol nunca se punha". Além das batalhas regulares, ele se mete em todo tipo de aventura, de onde sempre sai esfolado, quebrado e mais sarcástico em relação à sua época e sua vida.
Hospedagem em La Latina
⭐Hostal la Macarena
Cava de San Miguel nº 8
La Macarena, minha "casa" na última passagem por Madri |
Em 2014, escolhi esse hostal em La Latina a partir de uma dica do blog Turomaquia. Amei a localização, a dois passos do Arco de Cuchilleros, acesso à Plaza Mayor, em uma região lotada de bares e restaurantes interessantes e ao ladinho do Mercado de San Miguel.
A recepção funciona 24 horas, o Wi-Fi é gratuito e funciona bem direitinho. As diárias no single, em janeiro de 2014, custaram €50. Em junho de 2024, as diárias estão custando € 79.
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