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Lembrança do D. Quixote no Bairro das Letras de Madri: exclusiva para pedestres, a Calle de Huertas é pavimentada com trechos de grandes clássicos da literatura e da poesia espanhola |
No tempo em que Madri era capital do mundo, lá no Século 17, o humilde arrabalde que hoje é o Barrio de las Letras era uma área semi-rural. Sua paisagem era composta de huertas (chácaras) que produziam frutas e hortaliças para abastecer as mesas da cidade.
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Friozinho na barriga: Cervantes morou nesta rua |
Ainda hoje, o Barrio de las Letras honra a tradição do Século de Ouro como área boêmia de Madri, sem perder a cara de lugar onde mora gente.
Com tráfego de automóveis controlado e ruas exclusivas para pedestres, como a Calle de Huertas e a Calle Cervantes, o Barrio de las Letras está cercado de cartões postais (Plaza Mayor, Porta do Sol e os museus do Prado e Reina Sofia), e é perfeito para ser explorado a pé e sem pressa.
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A tradição boêmia persiste nos bares e casas noturnas do
Barrio de las Letras |
Poucos elementos de pedra e cal da época de Lope e Cervantes chegaram aos nossos dias, mas o Barrio de las Letras está cheio de lembranças daqueles tempos.
Esse é um passeio para saborear a história, lembrar episódios pitorescos e mergulhar na caminhada usando tanto o mapa quanto a imaginação. Vamos dar um passeio?
Madri - Bairro de las Letras
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Entre a Porta do Sol e o Paseo del Prado, o Barrio de las Letras é uma ótima opção de passeio em Madri |
O que ver no Barrio de las Letras de Madri
⭐Os corrales de comédias de Madri
Para quem vem da Plaza Mayor, o Barrio de las Letras começa na Calle de La Cruz. No tempo de Lope e Cervantes, essa rua abrigava alguns bordéis, mas tornou-se célebre como endereço de um das mais concorridas casas de espetáculo, na época, o Corral de la Cruz (o local exato seria na esquina dessa rua com a Plazuela de Angel).
A poucos passos dali, ficava o outro lendário palco madrilenho, o Corral de la Pacheca (1568), o mais antigo da cidade, posteriormente ofuscado pelo vizinho Corral del Príncipe, na área que hoje é a Plaza de Santa Ana.
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Personagens de Calderón de la Barca, um dos grandes do
teatro espanhol do século 17, representados na base do monumento em homenagem
ao autor, na Plaza de Santa Ana |
O teatro era a grande paixão dos madrilenhos nos Séculos 16 e 17 e a nobreza não ficava imune a essa devoção — embora sentasse em áreas reservadas nos corrales de comedias, para não se misturar com o “populacho”.
Mais do que altezas, o Corral del Príncipe teve uma majestade como assídua frequentadora. Contam os historiadores que Felipe IV de Habsburgo era fanático pelo teatro — e pelas atrizes.
Com uma delas, Maria Calderón, conhecida como La Calderona, Filipe IV teve um longo romance e um filho bastardo, D. Juan José de Áustria, que frequentou a corte com ostentação e desenvoltura e assumiu de fato o controle da monarquia espanhola entre 1677 e 1679.
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O Teatro Español foi construído no mesmo local onde esteve o Corral del Príncipe |
O público acompanhava os lançamentos teatrais com avidez. Os principais autores e atores eram verdadeiros pop stars da época.
Ainda que dividida entre os balcões (para os nobres), a plateia (para os remediados) e uma espécie de geral (para os muito pobres), a cidade se encontrava no teatro, assistia às representações emocionada e não era raro atirarem frutas podres e quebrarem tudo quando o enredo da peça ou a performance dos artistas não agradava.
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Estátua de Federico García Lorca no centro da Plaza de Santa Ana |
Os corrales já não estão mais lá, mas sua memória persiste com muita força na Plaza de Santa Ana, um dos muitos recantos simpáticos do Barrio de las Letras.
O Teatro Español, que domina um dos lados da Plaza de Santa Ana, faz as honras da casa. Ele foi construído no mesmo local onde esteve o Corral del Príncipe e exibe na fachada as efígies de alguns expoentes da dramaturgia espanhola.
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Hotel Reina Victoria e o monumento a Calderón de la Barca |
A Plaza de Santa Ana é um bom lugar para uma pausa. Cercada de bares e restaurantes — nem todos escancaradamente pega-turistas — ela preserva um pouco do ar boêmio que a tornou um dos lugares mais trendy na Madri do início do Século 20.
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Lorca, o meu favorito, na Plaza de Santa Ana |
Graças ao fausto de suas instalações, o Hotel Reina Victoria foi rapidamente convertido no favorito dos toureiros, os pop stars espanhóis no início do Século 20.
Contam que o escritor Ernest Hemingway (também ele uma estrela), fã de touradas, era frequentador assíduo da Cervecería Alemana, que ainda está lá, no nº 6 da Praça de Santa Ana.
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Casa de Lope de Vega, na Rua Miguel de Cervantes. Já tá bom ou precisa mais? |
Calle Cervantes nº 11
Por falar em pop stars, pertinho da praça fica a casa do maior deles, no Século 17.
Félix Lope de Vega é um personagem tão interessante quanto os muitos a que deu vida em sua criação literária. Ele foi uma espécie de ídolo das multidões em Madri, graças a sua vasta produção teatral.
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A Casa de Lope de Vega é um museu gratuito. A visita guiada
é uma deliciosa viagem no tempo |
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A maioria dos edifícios que se vê hoje no Bairro das Letras
são do Século 19 |
⭐Convento das Trinitarias Descalzas de San Ildefonso
Outras duas construções do tempo de Cervantes e sua turma ainda de pé no Barrio de las Letras são a Igreja de San Sebastián (a paróquia frequentada pelas atrizes do Século 17, onde foi enterrado Lope), na Calle de Atocha, e Convento das Trinitarias Descalzas de San Ildefonso, na Calle Lope de Vega.
Este último edifício, segundo historiadores, foi o que menos mudou desde o Século 17. Concluído em 1609, o Convento das Trinitarias Descalzas de San Ildefonso teve entre suas freiras Isabel, filha de Cervantes, e Marcela, filha de Lope.
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As filhas de Lope e de Cervantes foram freiras no Convento
das Trinitárias. A placa na foto à direita lembra Sor (irmã) Marcela, filha de
Lope, que também escreveu peças teatrais |
Só em 2015, após intensa pesquisa na cripta da igreja, cientistas espanhóis acreditam ter encontrado vestígios dos restos mortais de Miguel de Cervantes, o maior escritor no idioma espanhol.
Representante da geração seguinte de expoentes das letras espanholas, Calderón de la Barca tem um episódio insólito ligado ao Convento das Trinitarias Descalzas de San Ildefonso: na juventude, invadiu a clausura, brandindo uma espada e arrancando os véus das freiras, em busca de um desafeto com quem tinha iniciado uma contenda de cutiladas na vizinhança.
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Na fachada do Convento das Trinitárias, a placa lembra que
este é o local de sepultamento de Cervantes. Os restos do escritor, porém, só
foram identificados em 2015, após muita pesquisa |
São realizadas apenas quatro visitas guiadas por semana, duas às sextas (em inglês, às 16 horas, e em espanhol, às 17) e mais duas aos sábados (às 11h, em inglês, e às 12h, em espanhol). A visita é gratuita.
⭐As casas de Cervantes
Miguel de Cervantes teve pelo menos quatro endereços no Barrio de las Letras. O escritor morou na Calle de Huertas nº 18, na Calle de León e na Plazuela Matute
A última das residências de Cervantes foi na esquina das ruas de Francos (hoje Cervantes) e de León, em um edifício que está assinalado por uma placa em homenagem ao escritor.
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Uma placa (à esquerda), marca o último endereço de
Cervantes, na rua que hoje leva seu nome |
Mediante reserva prévia, é possível visitar a gráfica e ver uma réplica da prensa onde foi rodada a edição do livro, em 1605.
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A casa da discórdia: aqui viveram Francisco de Quevedo e Luís de Góngora |
Nascido em família nobre, a vida de Quevedo foi uma montanha russa entre a opulência e as dívidas, entre a simpatia entusiasmada dos governantes e o exílio e até a prisão por motivos políticos.
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O casarão onde viveu Quevedo agora é uma taberna. Ele
certamente aprovaria |
Um episódio famoso de Quevedo é o desfecho de sua longa inimizade com o poeta Luís de Góngora (que gozou de muito prestígio na sua época, mas hoje é mais lembrado por ter dado origem ao adjetivo “gongórico”, sinônimo de “afetação exagerada”).
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Versos de Quevedo (Século 17) e de José Zorrilla (Século 19) na Calle de Huertas |
A casa da discórdia já não preserva qualquer característica do Século 17, mas está identificada por uma placa (Calle de Quevedo nº 7) que aponta ter sido residência do poeta-espadachim.
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Fiquei doida pela Livraria Miguel Miranda |
O Barrio de las Letras não seria digno de sua tradição se não tivesse livrarias adoráveis, algumas verdadeiras preciosidades.
Uma dessas livrarias apaixonantes do Bairro das Letras de Madri é a Miguel Miranda, onde fiz umas comprinhas bem legais.
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E pirei na coleção de mapas antigos da Livraria México |
O grêmio distribui um mapa com a localização de todas as livrarias associadas que é uma mão na roda para quem quer se dedicar ao delicioso garimpo de prateleiras em Madri. Veja algumas livrarias bacanas do Barrio de las Letras no mapa mais abaixo.
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O Bairro de las Letras tá cheio de tabernas interessantes |
Boemia no Barrio de las Letras
A grande oferta de bares, tabernas e restaurantes do Barrio de las Letras a convida a gente a emendar o passeio com o almoço ou a happy hour.
Eu almocei muito bem no Viet Nam, restaurante simpaticíssimo e com preços bem honestos, na Calle de Huertas (siga o link pra ver mais).
E não esqueça de voltar à noite ao Barrio de las Letras (e a noite, para os madrilenhos, nunca começa antes das 22h), para curtir um pouco do agito boêmio. Afinal, isso faz parte da alma do lugar.
Como montei o roteiro no Barrio de las Letras
O roteiro desse passeio foi traçado a partir do livro Viaje a los Escenarios del Capitán Alatriste, de Juan Eslava Galán, que há muito tempo é o meu "guia turístico" favorito em Madri.
Não há edição do livro em português e, mesmo em espanhol, ele está esgotadíssimo, infelizmente. Para saber mais sobre o livro, veja este post: Roteiros literários e cinematográficos
Se você curtiu este roteiro, experimente esse também:
Madri: um passeio pelo Século de Ouro (e todas as atrações são grátis!)
Barrio de las Letras: passeie de dia, farreie à noite |
O Barrio de las Letras também é boa opção de hospedagem em Madri, com muitos estabelecimentos do tipo hostal, a versão espanhola da pousada domiciliar.
Os hostales madrilenhos, em geral, oferecem acomodações simples a baixo preço.
Em 2008, por exemplo, passei alguns dias hospedada na Calle Zorrilla, a dois passos do Museu do Prado, no Hostal Reconquista, simplesinho e muito decente. Atualmente, as diárias por lá estão em € 40 no quarto individual, com banheiro privativo.
Mais dicas de Madri
Andaluzia: Cádis, Córdoba, Granada, Ronda e Sevilha
Castela e La Mancha: Toledo
Castela e Leão: SegóviaCatalunha: Barcelona, Girona e Tarragona
Comunidade Valenciana: Valência
Galícia: Santiago de Compostela, Caminho de Santiago e cidades da rota
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