19 de fevereiro de 2017

Madri: um passeio no Bairro de las Letras


Trechos do D. Quixote gravados no piso da Calle de las Huertas, do Bairro das Letras de Madri
Lembrança do D. Quixote no Bairro das Letras de Madri: exclusiva para pedestres, a Calle de Huertas é pavimentada com trechos de grandes clássicos da literatura e da poesia espanhola

Um dos meus programas preferidos em Madri é passear pelo Barrio de las Letras (Bairro das Letras), onde memórias literárias e livrarias encantadoras convivem democraticamente com a boemia das tabernas tradicionais, casas noturnas animadas e restaurantes descolados.

No tempo em que Madri era capital do mundo, lá no Século 17, o humilde arrabalde que hoje é o Barrio de las Letras era uma área semi-rural. Sua paisagem era composta de huertas (chácaras) que produziam frutas e hortaliças para abastecer as mesas da cidade.

Rua onde morou Miguel de Cervantes no Bairro das Letras de Madri

Friozinho na barriga: Cervantes morou nesta rua


Essa área acabou se convertendo em opção de moradia barata para os artistas da época, do teatro e das letras — entre eles, Miguel de Cervantes e Lope de Vega — que trouxeram consigo seu jeito boêmio de viver.

Ainda hoje, o Barrio de las Letras honra a tradição do Século de Ouro como área boêmia de Madri, sem perder a cara de lugar onde mora gente.

Com tráfego de automóveis controlado e ruas exclusivas para pedestres, como a Calle de Huertas e a Calle Cervantes, o Barrio de las Letras está cercado de cartões postais (Plaza Mayor, Porta do Sol e os museus do Prado e Reina Sofia), e é perfeito para ser explorado a pé e sem pressa.

Casa noturna no boêmio Barrio de las Letras de Madri
A tradição boêmia persiste nos bares e casas noturnas do Barrio de las Letras


Meu roteiro pelo Barrio de las Letras é tanto para ver quanto para evocar.

Poucos elementos de pedra e cal da época de Lope e Cervantes chegaram aos nossos dias, mas o Barrio de las Letras está cheio de lembranças daqueles tempos.

Esse é um passeio para saborear a história, lembrar episódios pitorescos e mergulhar na caminhada usando tanto o mapa quanto a imaginação. Vamos dar um passeio?


Madri - Bairro de las Letras



Mapa do Barrio de las Letras, Madri
Entre a Porta do Sol e o Paseo del Prado, o Barrio de las Letras é uma ótima opção de passeio em Madri

O que ver no Barrio de las Letras de Madri

⭐Os corrales de comédias de Madri

Para quem vem da Plaza Mayor, o Barrio de las Letras começa na Calle de La Cruz. No tempo de Lope e Cervantes, essa rua abrigava alguns bordéis, mas tornou-se célebre como endereço de um das mais concorridas casas de espetáculo, na época, o Corral de la Cruz (o local exato seria na esquina dessa rua com a Plazuela de Angel).

A poucos passos dali, ficava o outro lendário palco madrilenho, o Corral de la Pacheca (1568), o mais antigo da cidade, posteriormente ofuscado pelo vizinho Corral del Príncipe, na área que hoje é a Plaza de Santa Ana.

Monumento a Calderón de la Barca na Plaza de Santa Ana em Madri
Personagens de Calderón de la Barca, um dos grandes do teatro espanhol do século 17, representados na base do monumento em homenagem ao autor, na Plaza de Santa Ana


Batizar uma casa de espetáculos como “do Príncipe” pode parecer excessivamente pomposo, mas é exato.

O teatro era a grande paixão dos madrilenhos nos Séculos 16 e 17 e a nobreza não ficava imune a essa devoção — embora sentasse em áreas reservadas nos corrales de comedias, para não se misturar com o “populacho”.

Mais do que altezas, o Corral del Príncipe teve uma majestade como assídua frequentadora. Contam os historiadores que Felipe IV de Habsburgo era fanático pelo teatro — e pelas atrizes.

Com uma delas, Maria Calderón, conhecida como La Calderona, Filipe IV teve um longo romance e um filho bastardo, D. Juan José de Áustria, que frequentou a corte com ostentação e desenvoltura e assumiu de fato o controle da monarquia espanhola entre 1677 e 1679.

Teatro Español em Madri
O Teatro Español foi construído no mesmo local onde esteve o Corral del Príncipe


Os corrales de comedias (a versão seiscentista dos teatros) eram o centro da vida cultural e social de Madri no chamado Século do Ouro.

O público acompanhava os lançamentos teatrais com avidez. Os principais autores e atores eram verdadeiros pop stars da época.

Ainda que dividida entre os balcões (para os nobres), a plateia (para os remediados) e uma espécie de geral (para os muito pobres), a cidade se encontrava no teatro, assistia às representações emocionada e não era raro atirarem frutas podres e quebrarem tudo quando o enredo da peça ou a performance dos artistas não agradava.

Estátua de García Lorca na Plaza de Santa Ana em Madri
Estátua de García Lorca na Plaza de Santa Ana em Madri
Lorca, o meu favorito, no centro da Plaza de Santa Ana


⭐ Plaza de Santa Ana

Os corrales já não estão mais lá, mas sua memória persiste com muita força na Plaza de Santa Ana, um dos muitos recantos simpáticos do Barrio de las Letras.

O Teatro Español, que domina um dos lados da Plaza de Santa Ana, faz as honras da casa. Ele foi construído no mesmo local onde esteve o Corral del Príncipe e exibe na fachada as efígies de alguns expoentes da dramaturgia espanhola.

Monumento a Calderón de la Barca em Madri
Monumento a Calderón de la Barca com o Hotel Reina Victoria ao fundo


No meio da praça, ao rés do chão, está o meu favorito, o poeta e dramaturgo Federico Garcia Lorca.

A Plaza de Santa Ana é um bom lugar para uma pausa. Cercada de bares e restaurantes — nem todos escancaradamente pega-turistas — ela preserva um pouco do ar boêmio que a tornou um dos lugares mais trendy na Madri do início do Século 20.

Esse burburinho que persiste na Plaza de Santa Ana é culpa do Hotel Reina Victoria, inaugurado em 1919.

Graças ao fausto de suas instalações, o Hotel Reina Victoria foi rapidamente convertido no favorito dos toureiros, os pop stars espanhóis no início do Século 20.

Contam que o escritor Ernest Hemingway (também ele uma estrela), fã de touradas, era frequentador assíduo da Cervecería Alemana, que ainda está lá, no nº 6 da Praça de Santa Ana.

Casa Museu Lope de Vega no Barrio de las Letras de Madri
Casa de Lope de Vega, na Rua Miguel de Cervantes. Já tá bom ou precisa mais?

⭐Museu Casa de Lope de Vega
Calle Cervantes nº 11

Por falar em pop stars, pertinho da praça fica a casa do maior deles, no Século 17.

Félix Lope de Vega é um personagem tão interessante quanto os muitos a que deu vida em sua criação literária. Ele foi uma espécie de ídolo das multidões em Madri, graças a sua vasta produção teatral.

Casa Museu Lope de Vega no Barrio de las Letras em Madri
Casa Museu Lope de Vega no Barrio de las Letras em Madri
A Casa de Lope de Vega é um museu gratuito. A visita guiada é uma deliciosa viagem no tempo


De 1610 até sua morte, em 1635, Lope de Vega viveu em uma casa da Calle de Francos, hoje Calle Cervantes, um dos poucos imóveis seiscentistas ainda de pé — ainda que bastante alterado — do Barrio de las Letras. 

O imóvel foi restaurado em 1935 e transformado na Casa-Museu de Lope de Vega. Recomendo muito a visita, que é gratuita (veja neste post: Madri - um passeio pelo Século de Ouro) e dá uma excelente aula sobre a vida cotidiana na Madri do Século 17.

Barrio de las Letras em Madri
Casarões do Barrio de las Letras em Madri
Barrio de las Letras em Madri

A maioria dos edifícios que se vê hoje no Bairro das Letras são do Século 19, mas ainda se encontra um ou outro casarão com uma carinha mais antiga, como este acima


A casa de Lope de Vega é uma das poucas sobreviventes do Século de Ouro no Barrio de las Letras, onde a maioria dos edifícios que se vê na atualidade data do Século 19.

⭐Convento das Trinitarias Descalzas de San Ildefonso

Outras duas construções do tempo de Cervantes e sua turma ainda de pé no Barrio de las Letras são a Igreja de San Sebastián (a paróquia frequentada pelas atrizes do Século 17, onde foi enterrado Lope), na Calle de Atocha, e Convento das Trinitarias Descalzas de San Ildefonso, na Calle Lope de Vega.

Este último edifício, segundo historiadores, foi o que menos mudou desde o Século 17. Concluído em 1609, o Convento das Trinitarias Descalzas de San Ildefonso teve entre suas freiras Isabel, filha de Cervantes, e Marcela, filha de Lope.

Convento das Trinitárias Descalças de San Ildefonso no Barrio de las Letras em Madri
Convento das Trinitárias Descalças de San Ildefonso no Barrio de las Letras em Madri
Convento das Trinitárias Descalças de San Ildefonso no Barrio de las Letras em Madri
Lope e Cervantes tiveram filhas freiras do Convento das Trinitárias. A placa na foto acima lembra Sor (irmã) Marcela, filha de Lope, que também escreveu peças teatrais


O autor do D. Quixote foi sepultado no Convento das Trinitárias, mas como morreu pobre, não teve direito a um túmulo permanente.

Só em 2015, após intensa pesquisa na cripta da igreja, cientistas espanhóis acreditam ter encontrado vestígios dos restos mortais de Miguel de Cervantes, o maior escritor no idioma espanhol.

Representante da geração seguinte de expoentes das letras espanholas, Calderón de la Barca tem um episódio insólito ligado ao Convento das Trinitarias Descalzas de San Ildefonso: na juventude, invadiu a clausura, brandindo uma espada e arrancando os véus das freiras, em busca de um desafeto com quem tinha iniciado uma contenda de cutiladas na vizinhança.

Convento das Trinitárias Descalças no Bairro das Letras em Madri
Convento das Trinitárias Descalças no Bairro das Letras em Madri

Na fachada do Convento das Trinitárias, a placa lembra que este é o local de sepultamento de Cervantes. Os restos do escritor, porém, só foram identificados em 2015, após muita pesquisa


Para ver o interior do Convento das Descalças, é preciso programar direitinho, pois ele tem horários muito restritos.

São realizadas apenas quatro visitas guiadas por semana, duas às sextas (em inglês, às 16 horas, e em espanhol, às 17) e mais duas aos sábados (às 11h, em inglês, e às 12h, em espanhol). A visita é gratuita.

⭐As casas de Cervantes

Miguel de Cervantes teve pelo menos quatro endereços no Barrio de las Letras. O escritor morou na Calle de Huertas nº 18, na Calle de León e na Plazuela Matute

A última das residências de Cervantes foi na esquina das ruas de Francos (hoje Cervantes) e de León, em um edifício que está assinalado por uma placa em homenagem ao escritor.

Casa de Miguel de Cervantes no Barrio de las Letras em Madri
Rua Miguel de Cervantes no Barrio de las Letras em Madri

Uma placa (no alto), marca o último endereço de Cervantes, na rua que hoje leva seu nome


Mais adiante, no número 87 da Calle de Atocha, está a sede da Sociedade Cervantina, no mesmo local onde funcionou a gráfica de Juan de la Cuesta, onde foi impressa a primeira edição do Quixote.

Mediante reserva prévia, é possível visitar a gráfica e ver uma réplica da prensa onde foi rodada a edição do livro, em 1605.

Casa de Francisco de Quevedo no Barrio de las Letras em Madri
Casa de Francisco de Quevedo no Barrio de las Letras em Madri
A casa da discórdia: aqui viveram Francisco de Quevedo e Luís de Góngora


⭐Casa de Francisco de Quevedo

Na antiga Calle del Niño, hoje Calle Quevedo, viveu o poeta Francisco de Quevedo, que deve ter sido uma das figuras mais divertidas de seu tempo.

Nascido em família nobre, a vida de Quevedo foi uma montanha russa entre a opulência e as dívidas, entre a simpatia entusiasmada dos governantes e o exílio e até a prisão por motivos políticos. 

Casa do poeta Francisco de Quevedo no Bairro de las Letras em Madri
O casarão onde viveu Quevedo agora é uma taberna. Ele certamente aprovaria


Membro da ordem religiosa-militar dos Cavaleiros de Santiago, Quevedo não deixou que isso atrapalhasse sua fama de farrista, namorador e espadachim esquentadinho, ávido por um duelo.

O escritor contemporâneo Arturo Pérez-Reverte apresenta Quevedo como amigo íntimo de seu personagem Capitão Alatriste, herói de aventuras deliciosas no Século de Ouro. “No queda sino batirnos” (Só nos resta duelar), é o bordão desse Quevedo da ficção. 

Um episódio famoso de Quevedo é o desfecho de sua longa inimizade com o poeta Luís de Góngora (que gozou de muito prestígio na sua época, mas hoje é mais lembrado por ter dado origem ao adjetivo “gongórico”, sinônimo de “afetação exagerada”).

Versos de Francisco de Quevedo na Calle de Huertas no Barrio de las Letras de Madri
Versos de José Zorrilla na Calle de Huertas no Barrio de las Letras em Madri
Versos de Quevedo (Século 17) e de José Zorrilla (Século 19) na Calle de Huertas


Góngora decidiu ganhar um por fora montando um cassino em casa. Denunciado, acabou indo à bancarrota e Quevedo comprou sua residência pelo prazer de despejá-lo — dizem que pretendia montar um bordel na antiga casa do adversário, famoso por seu moralismo, mas acabou se mudando para lá.

A casa da discórdia já não preserva qualquer característica do Século 17, mas está identificada por uma placa (Calle de Quevedo nº 7) que aponta ter sido residência do poeta-espadachim.

Livraria Miguel Miranda no Barrio de las Letras em Madri
Livraria Miguel Miranda no Barrio de las Letras em Madri

Fiquei apaixonada pela Livraria Miguel Miranda


Ah, tem livrarias no Barrio de las Letras (claro!)

O Barrio de las Letras não seria digno de sua tradição se não tivesse livrarias adoráveis, algumas verdadeiras preciosidades.

Uma dessas livrarias apaixonantes do Bairro das Letras de Madri é a Miguel Miranda, onde fiz umas comprinhas bem legais.

Livraria México no Barrio de las Letras em Madri
E pirei na coleção de mapas antigos da Livraria México


Pelo menos seis livrarias do bairro integram o Gremio Madrileño de Libreros de Viejo, associação que congrega casas especializadas em livros antigos, edições raras, mapas e gravuras.

O grêmio distribui um mapa com a localização de todas as livrarias associadas que é uma mão na roda para quem quer se dedicar ao delicioso garimpo de prateleiras em Madri. Veja algumas livrarias bacanas do Barrio de las Letras no mapa mais abaixo.

Taberna no Barrio de las Letras em Madri
Taberna no Barrio de las Letras em Madri
O Bairro de las Letras tá cheio de tabernas interessantes


Boemia no Barrio de las Letras

A grande oferta de bares, tabernas e restaurantes do Barrio de las Letras a convida a gente a emendar o passeio com o almoço ou a happy hour.

Eu almocei muito bem no Viet Nam, restaurante simpaticíssimo e com preços bem honestos, na Calle de Huertas (siga o link pra ver mais).

Restaurante no Barrio de las Letras em Madri
Casa noturna no Barrio de las Letras de Madri

Casa noturna no Barrio de las Letras. No alto, o restaurante cita o Quixote no panô da vitrine: "A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos (...) Pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida"


E não esqueça de voltar à noite ao Barrio de las Letras (e a noite, para os madrilenhos, nunca começa antes das 22h), para curtir um pouco do agito boêmio. Afinal, isso faz parte da alma do lugar.

Mapa do Barrio de las Letras
Clique nos ícones para ver os endereços 



Como montei o roteiro no Barrio de las Letras
O roteiro desse passeio foi traçado a partir do livro Viaje a los Escenarios del Capitán Alatriste, de Juan Eslava Galán, que há muito tempo é o meu "guia turístico" favorito em Madri.

Não há edição do livro em português e, mesmo em espanhol, ele está esgotadíssimo, infelizmente. Para saber mais sobre o livro, veja este post: Roteiros literários e cinematográficos

Se você curtiu este roteiro, experimente esse também: 
Madri: um passeio pelo Século de Ouro (e todas as atrações são grátis!)

casa noturna no Barrio de las Letras, Madri
Barrio de las Letras: passeie de dia, farreie à noite
Hospedagem no Barrio de las Letras
O Barrio de las Letras também é boa opção de hospedagem em Madri, com muitos estabelecimentos do tipo hostal, a versão espanhola da pousada domiciliar.

Os hostales madrilenhos, em geral, oferecem acomodações simples a baixo preço.

Em 2008, por exemplo, passei alguns dias hospedada na Calle Zorrilla, a dois passos do Museu do Prado, no Hostal Reconquista, simplesinho e muito decente. Atualmente, as diárias por lá estão em € 40 no quarto individual, com banheiro privativo.


A Espanha na Fragata Surprise - post-índice

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