18 de agosto de 2020

O dia que eu falei mal de Elvis Presley

Discos de Elvis Presley
Houve um tempo em que eu não gostava de Elvis — azar o meu

Ah os arroubos juvenis... Eu mal tinha acabado de escutar o Never Mind the Bollocks, em uma tarde do longínquo 1975, e já estava possuída pelo pelo espírito de Francis Fukuyama (antes de Fukuyama, por sinal). Decretei o fim da história.

"O Rock parou aqui", sentenciou a Eu-aos-14-aninhos, convicta de que nada mais suplantaria o viço transgressor, visceral e inovador contido no álbum da banda punk Sex Pistols. Se você está rindo da minha prepotência, ainda não viu nada: muito pior foi o dia que eu falei mal de Elvis Presley.

Disco Never Mind the Bollocks, dos Sex Pistols
Juventude é um perigo: eu escutei os Pistols e já saí decretando o fim da História do Rock 😁

Sim, porque a profecia adolescente ficou no ouvido de duas ou três testemunhas. Mas meu ataque a Elvis foi público, impresso em um jornal de respeitável tiragem, texto de página inteira na capa de uma caderno B que todo mundo lia (todo mundo em Salvador, pelo menos). E eu já estava mais crescidinha, tinha 26 anos.

Pra piorar, falei mal de The Pelvis na véspera da data em que ele completava 10 anos de morto (16 de agosto de 1987). E foi na véspera porque, na época, a Tribuna da Bahia não circulava aos domingos.

Meu texto (que eu transcrevo na íntegra, mais abaixo) provocou um deus nos acuda. O telefone da redação da Tribuna não parava de tocar — nunca imaginei que o fã clube de Elvis fosse tão grande na Bahia.

Tag de mala com Elvis Presley
Hoje, Elvis até viaja comigo

Era gente me xingando de tudo que é nome, alguns ameaçando me dar um corretivo. Teve até ameaça de morte — naquele tempo, achei pitoresco. Fosse no Brasil de hoje, ia ficar verdadeiramente preocupada.

O fuzuê durou uma semana — tempo pelo qual fui orientada pela chefia da redação a entrar no jornal pela rua de trás, pela porta da gráfica, para evitar o piquete. Sim, teve piquete de protesto. Magrinho, mas teve.

O que demorou muito mais foi meu desencontro com Elvis Presley. Eu ainda ia levar mais de uma década pra enxergar o artista (e que gigantesco artista!) que a soberba dos meus 26 anos sequer intuía. Com todas as contradições que eu cito no artigo, Elvis entrou pra o meu panteão — e John Lennon, fã de carteirinha de The Pelvis, teve uma participação fundamental na minha conversão.

Estátua de Elvis Presley em Memphis
Estátua de Elvis em uma esquina da legendária Beale Street, a rua do Blues, em Memphis

Mas pra alguma coisa a passagem do tempo tem que servir, né? Hoje, eu puxo as minhas orelhas pela petulância juvenil e cumpro a deliciosa penitência de ouvir, cantar e dançar com Elvis.

Em novembro de 2018, tive a imensa alegria de visitar Memphis, uma baita cidade, que pode bater no peito e se orgulhar de ser o lar do Blues e o berço do Rock'n'Roll. Memphis também é a terra adotiva de Elvis (nascido em Tupelo, Mississípi, em 8 de janeiro de 1935), a quem prestei as devidas homenagens.

Elvis Presley


Que bom que eu consegui descobrir Elvis Presley em uma encruzilhada desse meu caminho pela vida.

Aproveitando que a Fragata está no estaleiro por conta da pandemia, resolvi compartilhar essa história e o texto sacrílego que escrevi em 1987.

A morte de Elvis completou 43 anos há dois dias (16/08/2020).


Se quiser saber mais sobre minha visita à Memphis de Elvis Presley, dê uma olhadinha nesses posts:
Graceland, a casa de Elvis Presley em Memphis
Roteiro em Memphis nos passos de Elvis

E, enfim, eis a transcrição do meu artigo juvenil sobre Elvis:


Artigo sobre Elvis Presley na Tribuna da Bahia


Elvis, o rebelde careta
Publicado originalmente no jornal Tribuna da Bahia, em 15 de agosto de 1987 

O salvo conduto do Rock para as paradas de sucesso. É desta maneira que melhor se pode definir Elvis Presley, morto há dez anos em consequência do uso abusivo de drogas. 

Ele foi a embalagem branca e “oficial” encontrada pelo som que surgia na primeira metade dos anos 50 e que iria embalar, em seus acordes vigorosos, as transformações sociais que desembocaram nestes anos 80.

O papel de Elvis nessa longa jornada de três décadas empreendida pelo Rock’n’Roll é fundamental. Branco, bonito, protestante e anglo-saxão, ele foi a fachada dominante por trás da qual se abrigou o som “marginal” e “alternativo”, considerado pouco decente para frequentar os salões e os meios de comunicação da América dita “civilizada”.

Filho dileto do blues — o som originado nas “canções de trabalho” entoadas nos campos de algodão pelos escravos americanos — o Rock’n’Roll surgiu num berço muito distante dos tronos acolchoados onde se senta hoje em dia. 

Antes de virar “a Aids da música”, como quer o maestro Julio Medaglia, ou “uma das instituições mais caretas dos nossos dias”, como disse o crítico Nélson Mota, aquela “submúsica” que divertia adolescentes negros nas noites de sábado tinha um potencial muito perigoso para a caretice vigente.

O artigo foi publicado em página inteira, na capa do Caderno B da Tribuna da Bahia, ao lado dos comentários também ferinos de meu colega Cláudio Bandeira

Procura-se um ídolo
Até que uns sujeitos muito espertos descobriram que o Rock podia ser convertido em dólares — na “América oficial” (a branca). Neste dia, começou a busca por Elvis Presley. 

Era preciso encontrar um cara capaz de encarnar a rebeldia que mobilizava milhares de garotos, aliada a uma imagem compatível com o estrelato. O novo ídolo deveria despertar os suspiros das mocinhas e ser copiado pelos rapazes.

O talento de Chuck Berry, só para citar um exemplo, estava fora de cogitação: quem iria pagar para assistir um cara “negro, feio e recém-saído do reformatório”? 

Tentaram Bill Halley, que entrou para a história como o pai da nova música. Mas ele era gorducho, trintão e pai de família. Para a plateia, parecia mais um tio que um ídolo rebelde.

Elvis, ao contrário, tinha a estampa certa. Com uma voz que parecia saída de uma plantação de algodão e um visual “adequado” para os padrões da classe média americana, ele levou o topete gomalinado e os requebros escandalosos — que lhe valeram o apelido de The Pelvis — para o topo das paradas, derrubando a porta que se mantinha fechada para os pioneiros do Rock’n’Roll. 

Sem sinceridade
Mas quando se entende Rock’n’Roll como atitude — muito mais do que como um ritmo — nosso ídolo das multidões deixava muito a desejar. Como tantos produtos da indústria cultural, Elvis Presley representou seu papel de rebelde com muita competência, mas pouca sinceridade. 

Ele foi o veículo para o Rock naqueles tempos quase heroicos, quando ouvir Jaihouse Rock aos berros era o máximo de transgressão que a realidade repressora permitia ao público juvenil.

Mal sabiam aqueles garotos é que seu ídolo, no fundo, queria mesmo era ser agente do FBI, odiava calças jeans (“coisa de pobre”) e bailinhos de sábado e fez questão que a namorada, Priscilla Beaulieu, permanecesse virgem até a noite de núpcias, mesmo dormindo ao lado dela pelos oito anos de noivado.

Não se pode, porém, acusar Elvis de ter feito autocrítica da rebeldia que ajudou a implantar. Ele nunca acreditou nela. Nosso “rebelde” não passava de um careta.

Pra jogar mais lenha na fogueira, outro colega resolveu chutar a canela dos reclamantes, dias mais tarde

Delinquente de butique
O papel pioneiro desempenhado por Elvis é duplo. Num primeiro instante, ele leva o espírito da revolução adolescente para as prateleiras dos supermercados da cultura e para dentro dos lares da classe média — Presley popularizou a imagem do jovem que se recusa a copiar a geração anterior e simboliza uma ruptura sem retorno.

Na segunda etapa, ele inaugura a era do delinquente de butique. Do “desordeiro” que, no fundo, é um bom rapaz. Elvis Presley, mais do que ninguém, contribuiu para a popularização de um dos mitos mais tolos sobre a juventude da década de 50. 

A julgar por seu comportamento, aquela procura furiosa por novos caminhos era apenas vandalismo alimentado pela falta do que fazer. O grande Não pronunciado naquela época seria, sob esse ponto de vista, apenas um modismo destinado a vender discos e lotar cinemas.

O ponto da virada de Presley é a sua convocação para o serviço militar, em 1956, numa jogada publicitária muito bem armada pelo coronel Tom Parker, empresário do ídolo. Servir ao exército era uma boa forma de limpar a barra de The Pelvis junto à família americana.

Afinal, não se é jovem para sempre e não custa nada começar a conquistar públicos com maior poder aquisitivo que uma parca mesadinha sempre ameaçada de corte.

Mas esta virada rumo à “adaptação” significou o início do despencar da ladeira do ex-”transgressor”. Ele continua a vender discos até hoje, milhões visitam seu túmulo e ele ainda ganha concursos de “Rei do Rock”. 

Sua voz ainda embala festinhas, seus filmes ainda passam na TV, mas Elvis Presley perdeu seu posto. Ninguém mais se inspira nele para desafiar coisa alguma.

Sem garra
Na sua falta de sinceridade, o rebelde careta tinha mesmo que mudar de atitude. Só muita garra pode construir trajetórias como a de John Lennon, eternamente moderno, de Mick Jagger, a própria personificação do vigor do Rock’n’Roll, ou de Chuck Berry, a força primitiva e pura que ainda pode servir de inspiração para qualquer roqueiro dos anos 90.

Elvis Presley morreu em 16 de agosto de 1977. Era uma estrela milionária, cercada de fobias e guarda-costas em sua mansão de Graceland, na mesma cidade de Memphis, Tennessee, onde foi descoberto como abre-alas da trilha a ser percorrida.

Mas se o próprio Rock virou uma instituição careta, por que negar esse direito a seu rei? Seu papel foi cumprido e, quisesse Elvis ou não, a ruptura que ele ajudou a por em marcha era irreversível. 

Rei morto, rei posto? De jeito nenhum. Em tempos de hordas sombrias anunciando o fim do mundo em cada esquina, dá saudade de um cara com o topete gomalinado requebrando escandalosamente os quadris. Mesmo que seja feito de plástico. 

Quem dera Elvis tivesse sido mais sincero no papel que representou um dia.

Felizmente, dez anos depois, sobra pouco do coroa gordo, drogado, machista e reacionário que tentava eletrizar plateias com suas roupas cheias de espelhinhos e calças boca de sino.

O que fica e o que importa, Mr. Presley, é o grito que você trouxe do outro lado dos trilhos e fez imortal: Uop bop a loo bop a lop bem boom!

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4 comentários:

  1. Como ele não morreu, sugiro que você lhe mande a postagem, e depois publique a resposta dele. Como penitência, te condeno a ouvir 100 vezes o DVD da MC Kathylainne e assistir 100 vezes a alguma Live de sertanejo(s). Pode ser qualquer dupla. Dá no mesmo.

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  2. Cintia Campos:
    Eu achei que você estava mais que certa nessa reportagem com 26 anos. Tudo que você falou aqui é a mais pura realidade, não tem uma só palavra de que seja mentira. Que o Elvis sempre será gigante independente das criticas é um fato, mas que é sempre bom ver alguém lucido expondo a realidade é. Fãs xiitas do Elvis é uma das coisas mais irritantes e patéticas que pode existir.
    Parabéns a você pela clareza.

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    Respostas
    1. Serge, eu não retiro nenhuma palavra que escrevi naquele distante ano de 1987. Mas hoje eu lamento ter demorado tanto pra descobrir o baita artista que foi Elvis e importância que ele teve.

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