06 março 2003

La Floridita, Havana: cara a cara com Hemingway

La Floridita, Havana, Cuba
La Floridita, o templo do Papa Hemingway, em Havana

Sou fã da Revolução Cubana, de Che, Camilo e Fidel. Mas em Havana, o rastro que segui mais de perto foi o de um filho de Tio Sam: Ernest Hemingway, um dos meus maiores heróis literários, era apaixonado por Cuba, onde viveu e farreou, principalmente no mitológico bar La Floridita, onde dizem que inventou o daiquiri.

De tanto evocar o homem, morto no ano em que eu nasci (1961), Hemingway acabou aparecendo pra mim. E justo na Floridita. Foi um susto e uma alegria, até eu entender o que estava acontecendo.

Cara a cara com Hemingway em La Floridita, Havana

Passaporte brasileiro nos anos 1970

Aviso no meu primeiro passaporte: neca de Cuba


Desde criança, tenho a imaginação povoada pelas histórias de Fidel, Che, Camilo. Faz muitos anos que deixei de acreditar em "faróis socialistas", mas gosto da insolência desta Ilha, a 90 milhas de Miami, resistindo.

Meu primeiro passaporte, emitido em 1972, veio com aquele fatídico carimbo: "Válido para todos os países, menos para Cuba". Pois é, os mais novos não sabem — muitos dos mais velhos não lembram —, mas a ditadura brasileira teve dessas coisas. I a Cuba, até o início da minha vida adulta, era impossível ou, no mínimo, uma tremenda complicação.

Entretanto, minha principal inspiração para visitar a ilha foi o Papa — não o do Vaticano, bem entendido, mas Ernest Hemingway, o bom repórter que descobriu ter mais talento para inventar histórias do que para apurar fatos. 

Um grande autor, que não tem sequer uma obra listável entre os "grandes livros" . Porque ele era bom mesmo era de viver histórias. (Isso é injustiça minha com O Velho e o Mar, que é magnífico, e com Por Quem os Sinos Dobram, que já li uma meia-dúzia de vezes, pelo menos)

La Floridita, Havana
La Floridita e os famosos daiquiris, 
em fotos de novembro de 2015

Tive um grande amigo, o também jornalista Átila de Albuquerque, com quem partilhei incontáveis mesas de bar e madrugadas falando de Hemingway. Na trilha do Papa por Havana, eu também reencontrei meu amigo querido, morto tão prematuramente.

E foi com Átila e Hemingway que eu fui jantar ontem, no La Floridita, histórico restaurante de Havana. 

Fiz uma escala no balcão para um daiquiri a US$ 6, quase um assalto para quem comprou dólar a R$ 4 — estamos em março de 2003 e o terrorismo contra a eleição de Lula levou o câmbio para a estratosfera, lembram? 

Só que uma memória dessas não tem preço: o daiquiri foi inventado bem aqui, dizem, pelo Papa em pessoa. Peço outro e mais outro.

Carimbo da imigração cubana no passaporte

Meu carimbo cubano. Em 2003, o visto para Cuba era emitido em uma cédula avulsa. Era para não queimar o passaporte, em caso de futuras visitas aos EUA, país que até hoje mantém um absurdo embargo político e econômico à ilha


Com certeza não foram os daiquiris  são necessários muito mais que três para me derrubar —, mas talvez a meia luz da Floridita.

 O certo é que eu quase caí do tamborete ao ver Ernest Hemingway, em carne e osso, debruçar no balcão, a um metro e meio de onde eu estava. Não falei com ele: sou materialista e não falo com aparições. Além disso, o cara estava de péssimo humor.

Grunhiu alguma coisa para o garçom, que não entendeu nada — "Como assim?", pensei, "já não adivinham os desejos dos habitueés neste boteco?" — e só piorou o humor do Papa.

Socorro-me da racionalidade: "Deve ter baixado uma inspiração Disneylândia na direção de La Floridita e eles contrataram um sósia para divertir os turistas". Só que os rosnados do sujeito estavam muito realistas e, de repente, ele desandou a falar francês com uma meia dúzia de gaiatos que o festejavam com tapinhas nas costas. Só aí a repórter acordou e atreveu-se a perguntar o que era aquilo.

Nada muito emocionante: o cara era francês, os gaiatos eram amigos dele. O cara já estava há quatro dias em Cuba, completamente de saco cheio de ser lembrado de sua semelhança física com Hemingway. Topou vir à Floridita com a condição de que os amigos o deixassem em paz.

Fiquei com dó do cara e menti: "Imagina, moço, nem parece tanto..."

Miniatura em cerâmica de La Floridita, Havana
Miniatura de La Floridita, direto da minha coleção de casinhas

⭐La Floridita
Calle Obispo n° 557,  esquina da Monserrate, Habana Vieja

Abre todos os dias, do meio-dia à uma da manhã. É o tipo de lugar que hoje está na moda chamar de "retrô", com uma decoração que flerta com os anos 30. A comida estava ótima: uma entrada à base de caranguejo e uma ótima lagosta. Paguei os olhos da cara, considerando o câmbio da época. Hoje, tiraria de letra: US$ 45, com vinho, incluindo os daiquiris do balcão.

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6 comentários:

  1. Texto delícia, você manda muito bem Cyntia! Adorei!

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  2. Você escreve muito bem, Cyntia. Delícia.

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  3. Cyntia adorei seu senso de humor nesta postagem, quero muito conhecer Havana, não sabia do detalhe do passaporte, "Válido para todos os países menos Cuba" muito interessante, eu estava nascendo em 71, quando for vou vir aqui anotar tudo! Bjoss

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    1. Pois é, menina, tinha dessas coisas de não poder ir a Cuba, acredita? Outro dia eu postei essa imagem no Facebook. Nos anos 70, os brasileiros que queriam ir a Cuba precisavam ir para o México e viajar a partir de lá. Aliás, quando estive em Cuba, o país ainda não carimbava os passaportes, por conta do embargo americano. A gente recebia o visto em uma cédula separada e era lá que eles batiam o carimbo. Mas eu fiz questão de ter meu passaporte carimbado e essa uma das minhas lembranças de viagem mais queridas :)

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