7 de agosto de 2022

Caetano, 80 anos - uma das melhores viagens da minha vida

Caetano Veloso e Dona Canô
Uma lembrança que eu adoro: um dia inteiro acompanhando Caetano Veloso em Santo Amaro para uma reportagem, recebida com o maior carinho por Dona Canô, Caetano e toda a família. Hoje ele faz 80 anos e sua arte me proporciona uma das grandes viagens da minha vida

Feliz aniversário, gênio.

Eu era muito criancinha quando Caetano Veloso começou a fazer parte da minha vida. Em 1966, as quintas-feiras lá em casa eram pra ver "Esta Noite Se Improvisa", um programa de TV que reunia artistas para cantar, no susto, uma canção que contivesse uma palavra sorteada pelo apresentador.

"A palavra é...". E lá ia Caetano apertar a campainha, o craque do programa. "Você é forte em letras e músicas. Todas as músicas que ainda hei de ouvir".

No ano seguinte, do alto de meus seis aninhos, torci como numa copa do mundo por Alegria, Alegria no inesquecível Festival de Música Popular Brasileira de 1967, da TV Record — outro dia, revi, arrepiada, o VT integral da finalíssima do festival no Youtube. E chorei no cinema, vendo o documentário Uma Noite em 67, lançado em 2010.

Caetano Veloso no Festival da Record de 1977
Alegria, Alegria: por que não?

Alegria, Alegria ficou em quarto lugar no festival. “Perdeu” pra Ponteio, de Edu Lobo, a campeã, pra Domingo no Parque, de Gil, e pra Roda Viva, de Chico. Em plena ditadura, pouco mais de um ano antes do AI-5, a música brasileira tinha esse elenco de gênios, ao ponto de deixar uma das grandes obras de Caetano fora do pódio. “E uma canção me consola. Eu vou”.

O riso largo de Caetano acompanhou minha vida. Talvez mais até do que Lennon e os Beatles. Lá em casa houve lágrimas quando ele foi preso e forçado ao exílio, junto com Gil, em 1969, para viver entre “green grass, blue eyes, gray sky” em “silent pain and happiness”

E em Salvador todo mundo sempre soube que Debaixo dos caracóis dos seus cabelos tinha sido composta pra ele por Roberto Carlos, que o visitou no exílio.

LP "Caetano", de Caetano Veloso, de 1971
Jovem, este não é John Snow, é Caetano na capa de um disco genial, que tem London, London e In the hot sun of a Christmas Day

Em Londres, Cae gravou dois álbuns que estão no meu Olimpo musical. Por sorte, minha mãe se apaixonou por London London, ouvida no rádio, e comprou o disco Caetano (1971) — nem me perguntem quantas mesadas eu teria que economizar pra bancar um LP, ao 10 anos de idade. In the hot sun of a Christmas Day (desse LP,  de 1971) é uma das canções mais bonitas e tristes que eu já ouvi.

E Transa (1972) pipocou no toca discos lá de casa como um sopro de vento fresco. Nine out of ten é uma canção que ainda ouço regularmente e continua me trazendo a mesma sensação de que o universo é muito mais interessante do que o mundinho tacanha onde a ditadura e seus programas de TV moralistas e ufanistas queriam nos confinar.

E aí, Caetano e Gil voltaram. Lembro de ouvir até furar o disquinho de Gil (imaginem: Expresso 2222 e Oriente!!!) que acompanhou a edição da revista O Bondinho, com as entrevistas dos dois recém retornados. Não esqueço a instigante manchete de capa: "Caetano lança o verso transbundar".

LP "Qualquer Coisa", Caetano Veloso
Neste disco tem uma versão de uma canção dos Beatles melhor que a dos quatro meninos

Talvez eu não tenha curtido Araçá Azul, o LP seguinte, como ele merecia — em 1973 eu estava muito empenhada em copiar todos os trejeitos de Alice Cooper. Mas me deliciei com Joia e Qualquer Coisa, o “álbum duplo” desmembrado em dois de 1975 (obrigada, Caetano, por ter me apresentado a Chabuca Granda e La flor de la canela). 

A gravação de For No One de Caetano é mais bonita do que a dos Beatles (e quem fala isso é uma beatlemaníaca alucinada). E a versão que ele fez para a maravilhosa It's all over now baby blue, de Bob Dylan, é mais do que uma versão espetacular: é um copydesk. Em alguns versos, ele consegue aprimorar o que já estava irretocável. O resultado (Negro Amor, gravada por Gal) é pra ouvir em loop até o infinito.

E nem vou esticar muito a conversa sobre a discografia de Caetano, porque é capaz desse post não acabar nunca. Foram tantos discos geniais, tantas canções essenciais à minha vida que é até cruel tentar escolher o que citar. Mas, gente, o que é Cinema Transcendental? E Uns? Estrangeiro? "Alguém cantando é (sempre muito) bom de se ouvir" (Bicho, 1977).

Domingo (1967), disco compartilhado com Gal Costa, vai ter sempre o lugar mais aconchegado no meu coração.

E tem aquela promessa em Caetano (1986): "O poço é escuro, mas o Egito resplandece" (na canção José), que sempre me ajuda a levantar nos momentos ruins.

Cinema Transcendental, LP de Caetano Veloso
Cinema Transcendental: como pode um único álbum juntar tantas maravilhas como Trilhos Urbanos, Oração ao Tempo, Lua de São Jorge, Louco por Você...?

Para além do toca-discos, os verões de Salvador eram o tempo de Caetano de carne e osso. De assisti-lo nos shows na Concha Acústica e no Teatro Vila Velha. De encontrar no praia do Porto da Barra, na noite do Zanzibar, ou parceiro de plateia, nos shows do Teatro Castro Alves. 

Pra quem não é da Bahia ("Quem não é Recôncavo e não pode ser Reconvexo"), é difícil explicar que na nossa terra Caetano nunca foi um cara tietável — e não só porque naquele tempo não tinha Instagram.

Caetano fazia parte da nossa vida com uma naturalidade tão absoluta que a gente encontrava com ele, dizia “oi” e ele respondia com um sorriso, às vezes até puxava papo. 

Estrangeiro, LP de Caetano Veloso
Estrangeiro parece disco dos Beatles: todas as canções são perfeitas

Não era incomum a moçadinha baixar na casa dele, em Ondina, depois da praia, e ficar por lá — ele às vezes aparecia, às vezes não. O Réveillon da casa de Caetano era uma espécie de festa pública, todo mundo se sentia convidado e estava tudo certo — foi lá que celebrei a chegada de 1980, o ano em que virei aluna da UFBa.

Como jornalista, entrevistei Caetano várias vezes — a longa entrevista com Caetano fazia parte do calendário oficial de verão dos cadernos de Artes e Espetáculos de todos os jornais de Salvador. A conversa era sempre instigante.

Em 1987, passei um dia inteiro na casa de Dona Canô, em Santo Amaro, recebida como velha amiga (ainda que eu não fosse) para uma dessas matérias. Conversamos, almoçamos, rodamos de carro pela cidade com Caetano meio guia turístico... – “Sou um homem comum, qualquer um”.

Uns, LP de Caetano Veloso
Eu ouço Peter Gast, de Uns, quase todo dia

(A foto que abre este post foi feita naquele dia pela minha parceiríssima de reportagens, a fotógrafa Lúcia Correia Lima).

Na despedida, eu disse a ele — autor do verso “de perto ninguém é normal” — que a proximidade tinha me revelado um cara normalíssimo. E ele: “Ah, que legal, essa é a minha anormalidade!”

Hoje, 7 de agosto de 2022, Caetano Veloso completa 80 anos. A música e o gênio de Caetano têm me levado pela mão em uma das grandes viagens da minha vida. Uma viagem que começou em 1966 e, felizmente, não tem hora pra acabar.

Muito, LP de Caetano Veloso
Muito eu nem citei no texto, mas talvez seja o disco de Caetano que eu mais ouvi. Pudera, né? tem Terra, Muito Romântico, Sampa, São João, Xangô Menino, Eu te Amo...

Há poucos meses eu estava fuçando as prateleiras da legendária Livraria Linardi y Risso, em Montevidéu, quando uma canção começou a tocar suavemente na caixinha de som. Dois senhores que estavam na livraria — um cliente e um dos donos — pararam o que estavam fazendo para escutar a música, com uma cara de enlevo que a gente só faz quando ouve a essência da beleza.

Era Caetano e seu Canto do Povo de um Lugar: “Todo dia o sol levanta e a gente canta o sol de todo dia”. Sol em Leão. Sol de Caetano Veloso.

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6 comentários:

  1. Que narrativa maravilhosa. Obrigada!

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  2. Éramos felizes e não sabíamos. Num mesmo concurso, Ponteio, Alegria alegria, Domingo no Parque e Roda Viva. E hoje, o que nos sobra? A dita "velha guarda", já que, embora tenhamos alguns bons compositores e cantores, o que predomina nas paradas, shows e mídias é de uma indigência cultural nunca vista. Vejamos esta : "Quer andar de carro velho amor
    Que venha
    Pois eu sei que amar a pé amor
    É lenha"
    Que bom que, mesmo em seus 80 anos, ainda podemos nos deliciar com os Caetanos, Gils, Betânias, Miltons , Erasmos e alguns outros mais que dignificam a música brasileira.

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  3. Nao conhecia o Blog, gostei muito!

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