7 de setembro de 2011

A Caravana da Cidadania


Em abril de 1993, acompanhei a primeira Caravana da Cidadania, uma viagem de 4,2 mil quilômetros pelo interior do Brasil, entre Garanhuns (PE) e Vicente de Carvalho (SP), reconstituindo o trajeto feito por Luiz Inácio Lula da Silva, ainda criança, a bordo de um pau-de-arara, fugindo da seca. 
Os mais de 20 dias da Caravana foram narrados por alguns jornalistas no livro "Diário de Viagem ao Brasil Esquecido", publicado pela Editora Scritta em julho de 1993. O livro está esgotado, mas reproduzo aqui o capítulo que me coube na publicação. Infelizmente, não consegui localizar as fotos dessa grande aventura...

Acampamento de trabalhadores rurais em São Bento do Una (PE). Gente que caminha uma légua — seis quilômetros — até a água potável. Carne, só se for de raposa ou de peixe chupa-pedra recolhido na lama do riacho.

As casa são cabanas cobertas de plástico. Luz de fifó, água salobra. São 22 famílias resistindo desde janeiro de 92, brigando por uma terra seca, coberta de mato ralo e cinzento. Recebem-nos cantando: “Se não vem nosso direito, o Brasil perde também”.

Para quem tem a cabeça urbana, como a maioria dos integrantes da Caravana da Cidadania, a primeira pergunta é “para quê?”. Qual o sentido de enfrentar a fome, a polícia e a incerteza por esse pedaço de chão seco? 

Com um pouco mais de atenção — é preciso se aclimatar, reaprender um olhar nordestino, deixar o sotaque vir aberto —, o visitante começa a entender: “O que a gente sabe fazer é plantar. Na cidade, ia só pedir”, resume Seu Manoel, 53 anos. 

Lá, naquele chão seco, eles têm nome, sonho e profissão. A terra é a identidade dessa gente.

A capa do "livro da primeira
 Caravana",
editado pela Scritta 

em julho de 1993
A quarenta quilômetros do acampamento, em Garanhuns (PE), a terra é uma memória distante para Maria Quitéria Avelino da Silva, vinda de uma roça em Jucati. 

Com o filho Lucídio no colo, ela pensa antes de dizer a idade: “Acho que é uns 25. Meus papéis ficaram na casa de meu pai”.

Na porta do casebre de oito metros quadrados, no bairro do Magano, Maria Quitéria conta que sua última refeição, na véspera, foi tripa de galinha. 

São seis e meia da tarde, já está escuro e não há luz elétrica. O esgoto corre a céu aberto. Maria Quitéria não tem emprego nem título de eleitor. “Bem que eu voltava para a roça, se pudesse”.

Altivez e desalento - A altivez de Seu Manoel, o desalento de Maria Quitéria. A periferia de Garanhuns não difere muito dos muitos cantos de São Paulo onde vivem os Nordestinos. 

Com o pé na terra, eles têm outro brilho nos olhos. Botam cortina florida nas janelas das casas de barro, não abrem mão do vaso de planta. Insistem em olhar o céu esperando chuva. 

Na cidade, os olhos ficam no chão.

Em Garanhuns, os olhos procuram chuva há cinco meses. O pouco colhido está na feira de sábado, onde se vende de tudo: inhame, jaca, relógios de plástico, panelas, cartões postais com imagens de Xuxa e Raul Seixas. 

Acocorada junto ao tabuleiro improvisado, Maria José Ambrósio, 46 anos, tenta vender a produção da rocinha que toca com a ajuda dos sete filhos — maracujá, mandioca e pimentão. 

O resultado de sete dias de trabalho mal paga a condução de volta para casa. Maria apurou duzentos mil cruzeiros. “Quem trabalha na terra leva a vida a pulso”.

"Traga uma indústria"- Maria José não quer ir embora. Maria José quer água. Ainda não aprendeu a palavra irrigação, mas já ouviu dizer que “tem fazenda que puxa água de longe” e onde se colhe de tudo. 

Uma velhinha aborda Lula com um pedido mais ousado: “Traga uma indústria pra cá”. Depois de tanta dentadura, saco de cimento e par de botinas, parece que o Agreste começa a descrer das esmolas dos tempos de eleição.

Na estrada, a histórias da seca esbarram na gente. Em Iati (PE), cerca de cem pessoas pararam nossos ônibus. 

São quase dez da manhã, eles estão lá desde as seis. Fazem fila esperando o caminhão-pipa que abastece a cidade e só chega às dez da noite. Ninguém comeu ainda. 

Manoel Perino da Silva, 46 anos, espera o caminhão. Depois, vai andar duas léguas carregando um galão de água, antes de fazer a primeira refeição. “Tem um restinho de feijão que a mulher vai cozinhar”.

Palma: a única opção 
de refeição para os flagelados
da seca em Águas Belas
Gosto de palma - Manoel é um dos 13 mil flagelados de Iati que sonham conquistar uma das 1,3 mil vagas numa Frente de Trabalho. 

O pagamento por semana é de duzentos mil cruzeiros. Ele nunca ouviu falar em Inocêncio de Oliveira, nem no Dnocs*, mas gosta de saber que há um órgão do governo federal que faz poços artesianos. “Quem sabe eles não furam um aqui”.

Vinte quilômetros adiante, outra concentração, na entrada de Águas Belas (PE). 

Cerca de duzentas pessoas carregam pedaçõs de palma uma espécie de cacto que, em tempo de chuva, serve de alimento para o gado  —   ultimamente, tornou-se a única opção de refeição para as pessoas daqui. 

Sebastiana Freitas da Silva, 49 anos, avança e tenta colocar um pedaço de palma na boca de Lula: "Prove, prove para ver que gosto tem!”. Antes de alcançar Lula, Sebastiana desmaia. A última vez que comeu foi sexta-feira, quando tomou caldo de feijão. Já é meio dia de segunda.

O Dia de Canapi - Mas essa segunda-feira, 25 de abril, foi mesmo o Dia de Canapi (AL). Eram milhares de pessoas esperando a Caravana da Cidadania na entrada da cidade. A truculência da Família Malta foi substituída pelo clima de quermesse: bandeiras, faixas e muita música — Alegria, Alegria, hino dos caras-pintadas, foi das mais tocadas**

Olhando Lula caminhar no meio da multidão, cheguei a imaginar que tínhamos errado de endereço. Cadê a cidade assustada que visitei em fevereiro, junto com o escalão precursor da Caravana? O silêncio receoso que, então, respondia nossas perguntas  virou uma cantoria só — arriscaram até um pedacinho de Lula-lá. Quem pensa que a era Collor foi enterrada no Anhangabaú ou na Cinelândia tinha que estar em Canapi naquela segunda-feira. Era uma cidade inteira — aquela cidade — saindo de casa e se juntando ao resto do país.

Água Branca, Alagoas
Afronta aos coronéis- Sessenta e quatro quilômetros adiante de Canapi, a cidade de Água Branca (AL) tem um prefeito pestista e uma tradição de coronéis e pistoleiros. Luiz Xavier de Sá ganhou a eleição derrotando o candidato da Família Torres, descendentes do Barão da Água Branca. Descobriu a folha de pagamentos do município povoada por jagunços dos ex-donos da cidade, os cofres a zero e até o sumiço dos pneus dos carros da prefeitura.

A vitória petista em Água Branca foi a segunda afronta sofrida pelos Torres em duzentos anos de controle da cidade. A primeira foi obra de Lampião, que invadiu o solar do clã e obrigou a baronesa a fugir pela sacada do segundo andar, como o povo da Cidade conta, sempre com um risinho maroto. Mas neste final de tarde, Água Branca está silenciosa e atenta. Na Praça da Matriz, cercada por casarões coloniais, o povo ouve Lula, enquanto a caravana de jornalistas luta desesperadamente para transmitir fotos e matérias pelas únicas duas linhas telefônicas disponíveis.

Hilton Acioli, nosso menestrel, improvisa um recital após o ato público, só para os passageiros do zero cinco — o ônibus dos jornalistas. Ficamos para trás, ainda às voltas com as linhas telefônicas. Acioli é o autor de Lula-lá e do tema da Caravana da Cidadania, tão bonita e, até aqui, sem título. Foi batizado de Clareia, no meio da música e do cansaço, numa ladeira que podia ser de Olinda ou do Pelourinho.

"Porta-de-roça"- Sebastiana de Águas Belas, Maria Quitéria de Garanhuns, Seu Manoel de São Bento do Uma. Gente que não sobre em palanque, mas tem história para contar. Em Canindé do São Francisco (SE), perto da Hidrelétrica de Xingó, são eles que vão falar. Lula agarra o microfone e vai à luta, no meio da multidão: “Há quanto tempo você não recebe um salário mínimo?”. “Desde que nasci”, responde o tranalhador rural que se identifica como Papudinho. Ele veio de Graco Cardoso (SE), cidade de seis mil habitantes “e três mil desempregados”. José Manoel de Melo, de Itabi (SE), reclama uma vaga nas Frentes de trabalho: “A gente precisa e gosta de trabalhar”.

Sem palanque e sem discurso, estava instituída a Porta de Roça***. Em São Bernardo do Campo (SP) também começou assim, nos portões das montadoras. “Qual é seu sonho”, indaga Lula, substituindo o discurso no palanque pela “entrevista-caminhada” no meio do povo. “Eu quero ser fichado”, responde o menino de treze anos, do Bairro do Mulungu, em Paulo Afonso (BA). “Fichado”, no Sertão, é ter carteira assinada.

Cachoeira de Paulo Afonso
Expulsos pela barragem- Em Paulo Afonso, uma porta de roça viu as nuvens cinza-chumbo virarem uma chuvinha rala, caindo por pouco mais de cinco minutos. Foi quando a Caravana da Cidadania testemunhou uma das maiores agonias da seca. Aqui, o alarme falso desespera ainda mais quem aguarda há sete meses pela chuva, à beira do maior reservatório de água do Nordeste.

Plantada à beira do São Francisco, cercada pelos lagos da Hidrelétrica, Paulo Afonso também sofre com a seca. Água, aqui, tem muita, mas só para ver. Nas torneiras dos bairros pobres e nas roças dos pequenos proprietários ela não chega. A terra fértil, hoje, produz só energia elétrica. O Bairro do Mulungu abriga o povo expulso pela Barragem de Moxotó, construída nos Anos 70. “Eles arrastaram as famílias pra cima dos caminhões, largaram no meio do nada. Não tinha nem um pé de árvore”, conta o deputado Alcides Modesto (PT-BA) que, na época de padre, testemunhou o despejo.

Alternativas- São os mesmos casebres, o esgoto a céu aberto, as ruas sem calçamento. A diferença daqui para as tantas periferias aonde vão os nordestinos é que a memória de Moxotó ficou. “O povo aprendeu a lição”, conta Nilo, vereador do município vizinho de Glória. “Quando foi a vez de construir Itaparica****, o pessoal se organizou, exigiu projeto de reassentamento”.

O resultado dessa organização chama-se Projeto Jusante. São cerca de 12 agrovilas implantadas nos municípios de Glória, Curaçá, Rodelas e Chorrochó, na Bahia, e Petrolândia, Santa Maria e Orocó, em Pernambuco. O projeto tem potencial para gerar 70 mil empregos diretos e indiretos na região. Falta o governo federal liberar a verba para o início da irrigação. Desde 1988, as famílias aguardam, recebendo dois salários mínimos por mês, o momento de começar a produzir.

Jeremoabo
(foto: noticiasdosertao.com.br)
Como Corisco- Jeremoabo (BA), antigo quartel general dos macacos — as volantes que combatiam Lampião —, hoje é uma cidadezinha quente e triste. Na Praça da Matriz ainda se vê os restos de uma prosperidade que ficou para trás há muito tempo: casarões com azulejos, a igreja, as árvores centenárias. Lampião não teve coragem de entrar aqui, mas rabiscou em carvão um desafio à cidade, na parede da capelinha no alto da Serra do Boiadeiro, que domina a paisagem.

Em fevereiro de 1993, na passagem do escalão precursor da Caravana por Jeremoabo, o PT local era composto por João José, vigilante do Banco do Brasil, e por Alexinaldo, estudante. Isolados, perdidos, sem contato com a direção regional há quase um ano, estavam cercados , sem munição nem suprimentos, como Corisco, na famosa canção. Achavam difícil uma atividade da Caravana da Cidadania na cidade. “Está tudo desarticulado”. Mas Jeremoabo é a porta de entrada para Canudos, vamos ter que atravessá-la. Se tem fome, seca e cerca, faz parte do nosso caminho.

Oito e meia da manhã de quinta-feira, 28 de abril de 1993. Tempo fechado, com jeito de chuva, superamos Lampião e entramos na cidade. Logo no primeiro quarteirão, um grupo de crianças com as fardas da escola acenam bandeirinhas. Logo depois, os pipocos dos fogos de artifício. Das janelas, das calçadas, a cidade aplaude a passagem dos ônibus da Caravana. O chuvisco tímido começa a cair. As palmas vão virando um coro cada vez mais forte, empolgado. Na praça principal, estamos cercados de gente eufórica. Até o prefeito — também Lula, só que do PTB — veio nos receber.

Pena que Rogério Sotilli, parceiro do escalão precursor, não estava aqui para ver. No meio do povo, procuro os dois petistas da cidade, João José e Alex, para um abraço. Alex eu só fui encontrar adiante, em Canché (BA), no meio da estrada para Canudos (BA). João eu vou ter que abraçar por escrito.

Arraial do Belo Monte, 
a povoação de Conselheiro
A imagem do guerreiro- Os 96 quilômetros de barro até Canudos foram um osso duro para os nossos ônibus-leito. O chuvisco, que começou Jeremoabo, era tímido, mas insistente. Foi amansando a poeira e sol, nas quatro horas de percurso. Deu quase para sentir frio. A estradinha que margeia o Rio Vaza-Barris tem uma paisagem linda: formações rochosas esculpidas pelo vento, vegetação espetada. Ao longo do rio, muitas plantações irrigadas, verdes. E a chuva apertando.

Quando chegamos à praça de Canudos, encontramos uma multidão cantando: “Eu também sou a imagem do guerreiro/ Sou filho de nordestino/ da terra do Conselheiro” . Esta é a terceira povoação a brotar no lugar onde Antonio Conselheiro ergueu o Arraial do Belo Monte, há um século. Depois da guerra e do massacre, o segundo assentamento foi desalojado pelo Açude de Cocorobó, construído no Regime Militar. A Canudos de hoje fica a 18 quilômetros do sítio original. E foi exatamente aqui, sobre a praça da Nova Canudos, que a chuva desabou num aguaceiro generoso, após quase seis meses de estiagem.

Impossível procurar abrigo. A chuva, no Sertão do Raso da Catarina, vem lavando a alma da gente, esquentando o corpo. Em cinco minutos, somos um bando completamente ensopado, extasiado com tanta água, dançando na praça. Os caboclos sertanejos batem os tambores como os negros do Pelourinho. A música é do Olodum. Fala de Corisco, Zumbi, Conselheiro, da Revolta dos Malês: as várias maneiras de ser nordestino e de peitar a vida. As muitas imagens do guerreiro que essa terra cria e alimenta.

Cachoeira, no Recôncavo Baiano: 
terra de deuses que sabem dançar
Suave Recôncavo- A Ponte do Imperador ainda conserva os trilhos do trem. Os lampiões dão uma cor de miragem aos casarões plantados às margens do Rio Paraguaçu. Cachoeira (BA) é muito longe de Canudos. Aqui, a imagem do guerreiro é uma mulher que tosquiou os cabelos, amarrou uma faixa no busto e tornou-se o Soldado Medeiros, condecorada por bravura na Guerra de Independência, travada na Bahia a partir de junho de 1822. Outra Maria Quitéria, tão diferente da que encontramos em Garanhuns.

A travessia do Sertão acabou. Agora, a paisagem será mais suave. E Cachoeira nos faz festa, oferece suas ruas estreitas calçadas de pedra, suas praças e igrejas seculares. O riso aberto do Recôncavo. Só à luz do dia é que se vê as marcas da última enchente, em 1989, que alcançou as sacadas dos sobrados.

Cachoeira, a heróica, como dizem os baianos. O povo daqui só precisou de cano, foice e porrete para tomar e afundar a canhoneira portuguesa que bombardeava a cidade, em 25 de junho de 1822. Uma cidade de guerreiros, sim, mas de filhos do Recôncavo, uma terra onde até os deuses sabem dançar.

Migração- A paisagem vai ficando mais suave e mais verde, mas as histórias continuam a se dividir em do lado de cá e do lado de lá da cerca. Em Medina (MG), os trabalhadores rurais — quase todos os 22 mil habitantes da cidade — cultivam capim em sistema de meia com os fazendeiros. É o único jeito de conseguirem um pedaço de terra para plantar um pouco de feijão ou de milho, culturas de curta duração, que não atrapalham o cultivo do pasto para o gado. “A gente até podia ir para a cidade, ser funcionária. Mas o que a gente quer é trabalho”, diz Eva Teixeira da Cruz, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Já percorremos mais de 1,6 mil quilômetros de estradas e o significado de trabalho permanece o mesmo...

E aqui, no Vale do Jequitinhonha, a busca por trabalho só termina muito longe, nos canaviais do interior de São Paulo, na região de Ribeirão Preto, a 1,2 mil quilômetros de distância. De Itinga (MG), com 23 mil habitantes, estima-se que cinco mil homens fizessem o percurso, todos os meses de março, voltando em dezembro, para passar o Natal com as famílias. “Agora, eles não conseguem mais sequer juntar o dinheiro para a passagem de volta”, conta o prefeito da cidade, Solano de Barros (PT).

Tanta gente vai embora em busca de terra, mas a terra está toda ali, fértil, coberta de mato verde e escondendo jazidas de mais de trinta tipos de minérios. Na beira d’água, um casebre de pau-a-pique, com seis metros quadrados e cobertura de plástico: é tudo que o garimpo manual rende a quem passa a vida bateando a lama. "Lá em cima do rio" (à montante), na região de Diamantina, as dragas das grandes mineradoras arrancam fortunas, revolvendo o leito, assoreando e destruindo a vida no Jequitinhonha.

Margeando a cerca- Vinte dias, 4,2 mil quilômetros de estradas. A impressão é de que margeamos uma longa cerca. Uma linha interminável, separando a terra das pessoas, barrando a semeadura e a colheita —  a vida. Jequitinhonha, São Francisco, Paraguaçu, vocês engolem cidades, mas não podem com a cerca. Ela resiste, frustrando a vocação da terra, dos rios e do povo de um Brasil que não aparece na TV.

Em algum momento, atravessamos a fronteira, de volta ao “Brasil de cá”. Talvez em São Bernardo (SP), na porta da Volkswagen, cercados de gente com carteira assinada. Talvez antes, no lixão de Duque de Caxias (RJ), diante das latas, frutas podres e garrafas plásticas — fartura inimaginável no país que visitamos. No retorno, cidadania readquire o sentido urbano, sofisticado, cheio de meios-tons. Na estrada, a divisão era como luz e sombra no sol a pino: comer, morar, vestir. As ambições ainda são muito simples, naquele outro país.

Mas quem foi para estrada, aprendeu: aquele país tem o que dizer e quer falar. Basta lembrar do velhinho que encontramos na entrada de Laje (BA), no Vale do Jequiriçá: agarrou o microfone, apresentou-se como aposentado rural e soltou o verbo, ignorando os sucessivos cutucões que, em linguagem de palanque, significam “seu tempo acabou”. Contou da vida, do trabalho na roça, desancou os políticos, arrenegou a seca e, lá pelo vigésimo cutucão, chutou o balde: “Lula, você vai me desculpar, mas eu nunca tinha pegado no alto-falante. Hoje, eu vou dizer tudo”.

*Quando partimos com a caravana, em 25 de abril de 1993, uma das principais manchetes dos jornais tratavam da denúncia de uso indevido do equipamento do Departamento Nacional de Obras contra a Seca- DNOCS, que teriam sido desviados para perfurar poços artesianos nas terras do então presidente da Câmara dos Deputados, Inocêncio de Oliveira (PFL).
**Na época desta primeira Caravana, a pequena Canapi era uma espécie de símbolo da chamada “República de Alagoas”, apelido da corte do ex-presidente Fernando Collor de Mello . Terra dos Malta, a família da ex-primeira-dama Rosane Collor, a cidade abrigava alguns dos principais símbolos da corrupção e dos desmandos do coronelismo, segundo o imaginário da época: a sede da Associação pró-Carente de Canapi, entidade supostamente beneficiada por expressivas verbas desviadas da Legião Brasileira de Assistência (um dos primeiros escândalos do governo Collor), um CIEP novinho, abandonado e sem alunos, e a piscina da casa de Pompílio Malta, onde havia mais água do que nos reservatórios da cidade, como revelou uma reportagem de Ricardo Kotscho.
Ver Lula ser recebido como herói em Canapi, seis meses após o impeachment de Collor, foi a maior surpresa da Caravana — quando fizemos a viagem precursora, em fevereiro, entramos na cidade morrendo de medo de levar um tiro, mas a história do escalão precursor eu vou contar em outro post. O mais emocionante foi ver os jovens repetindo o roteiro dos estudantes de todo o país, que, protestando aos milhares, com a cara pintada e ao som de “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, marcaram os protestos que culminaram com a queda de Fernando Collor.
***”Porta-de-roça” foi uma expressão cunhada por Ricardo Kotscho, uma brincadeira com as “portas-de-fábrica”, aqueles mini-comícios das entradas das grandes empresas do ABC e demais regiões industriais que eram o símbolo da retomada das mobilizações sindicais, a partir da segunda metade dos Anos 70.
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2 comentários:

  1. Cyntia, sua bandida, você não avisou que o texto era tão longo. E o pior é que depois de começar a leitura não dá para abandonar pelo meio. Adorei!

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  2. Pois é Luiza, é um capítulo do livro... Pena que não consegui as fotos para ilustrar o post. Naquele tempo, eu não ligava para fazer imagens.

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