24 de setembro de 2013

Caruru de São Cosme, deliciosa tradição baiana


Prato de caruru de São Cosme e São Damião, celebração típica da Bahia
A oferenda aos santos gêmeos deve ser servida em uma gamela que não tenha sido usada antes. Depois da festa, o conteúdo deve ser depositado em uma área de mata. O caruru da foto foi dedicado a Crispim, Crispiniano, Cosme e Damião


Na Bahia, setembro é tempo de caruru, comida de santo oferecida aos Ibeji, filhos gêmeos de Xangô e Iansã, sincretizados como São Cosme e São Damião.

Os santos católicos são celebrados no dia  27 de setembro, mas o mês inteiro é marcado pelo oferecimento do Caruru de São Cosme, como o baiano carinhosamente abrevia o nome desse banquete africano refinado e irresistível.

Quem nunca provou um caruru de São Cosme não sabe o que está perdendo.

Prato de caruru, tradição africana na Bahia
Caruru completo (esse foi o prato que comi no caruru da casa da minha mãe, em setembro de 2014)

Além do caruru propriamente dito (feito de quiabo picadinho, temperado com amendoim, castanha, camarão seco e azeite de dendê), são servidos vatapá, feijão fradinho, feijão preto, milho branco, pipoca, banana frita, farofa de dendê, inhame, acarajé, pedacinhos de cana-de-açúcar e de coco, rapadura e xinxim de galinha (ensopado com dendê).

Tudo muito bem arrumado no prato, num encantador jogo visual e de texturas, onde a diversidade de sabores traduz perfeitamente a alma da Bahia.


Caruru de São Cosme na Bahia


Complementos do caruru na Bahia
Complementos do caruru na Bahia

Os complementos que não podem faltar: tirinhas do coco, roletes de cana, pipoca, milho branco cozido, feijão preto cozido, sem caldo


Como é o Caruru de São Cosme

Para quem não é da Bahia, explico: Cosme e Damião foram dois irmãos gêmeos que viveram na Síria, no Século 3, e foram martirizados por terem aderido ao cristianismo. Os dois eram médicos e entraram para o imaginário cristão como protetores das crianças.

Essas coincidências levaram os dois mártires a a ser sincretizados pelos africanos escravizados na Bahia como os Ibeji — gêmeos que protegem as crianças.

Balas e doces para São Cosme e São Damião
Em algumas casas, Cosme e Damião recebem queimados
 (o nome baiano para "bala" ou "bombom"). Em outras, são servidos com as iguarias da festa, ou farofa de mel

Tudo no caruru é uma celebração à solidariedade, ao coletivo. Começa no corte do quiabo (uma festa média é um caruru feito com mil quiabos), que mobiliza as vizinhas, as parentas e as amigas.

A tarefa de cortar os quiabos, dependendo da quantidade de comida a ser preparada, pode começar  vários dias antes.

Diz a tradição que os santos agradecem a quem se engaja no preparo do caruru. Alguns (poucos) quiabos devem ir para a panela inteiros, pois os premiados com eles, no prato, devem oferecer um caruru no ano seguinte.

Banana frita, complemento do caruru de São Cosme na Bahia

Caruru de preceito (que segue o ritual religioso) tem que ter banana frita


O mutirão prossegue na hora de servir o caruru, na azáfama das mulheres na cozinha, arrumando com agilidade uma quantidade industrial de pratos, com o capricho artesanal de quem prepara um mimo que o comensal vai partilhar com os santos.

O espírito comunitário continuava durante a festa: bastava saber que um conhecido estava oferecendo um caruru e ir chegando, que a comida sempre dava para todos. Também não era estranho o convidado levar um penetra.

Acarajé no o caruru de São Cosme na Bahia

Também não podem faltar o acarajé (foto) e o abará. Para o caruru de preceito, os bolinhos são feitos num tamanho menor do que o que se vê no tabuleiro da baiana


Pena que essa generosidade esteja em risco de extinção, com a Bahia cada vez mais aculturada às formalidades dos convites e dos RSVP.

Em minha casa sempre teve Caruru de São Cosme, com direito ao altarzinho dos santos, que eram os primeiros a ser servidos com as iguarias — o conteúdo dos pratinhos de Cosme e Damião era recolhido depois e depositado em área de mata, para complementar o ritual da oferenda.

Em seguida, o caruru era servido a sete crianças. A tradição mandava que o banquete das crianças fosse no chão, forrado com um pano branco, em uma gamela comunitária da qual os pequenos se serviam com as mãos. Lá em casa, o serviço era em pratos, mesmo. Mas já assisti ao ritual autêntico.

Rapadura no Caruru de São Cosme na Bahia

A rapadura, cortada em tijolinhos, também faz parte do prato de caruru


O resto dos convidados começava a comer o caruru de São Cosme depois que são servidos os santos e as crianças.

Exatamente como minha mãe aprendeu com Elza, ialorixá que morava à beira de uma lagoa, em um dos coqueirais que embelezavam o bairro da Pituba, antes da especulação imobiliária devastar tudo.

Elza era baiana de acarajé, mulher sábia e solidária que se tornou uma das melhores amigas lá de casa, laço forte e improvável entre uma “pessoa do povo”, como se dizia nos anos 60, e uma família branca de classe média.

Mesa de Caruru de São Cosme na Bahia
Na mesa do caruru ficam as iguarias que são servidas frias. À esquerda, acarajé, abará e rapadura. Ao centro, queimados embalados em celofane para a sobremesa e pipoca. À direita, banana frita e acaçá

Até hoje me comovo com a força do mistério das palavras que ela dizia enquanto me benzia contra o mau olhado, com um galhinho de planta que terminava irremediavelmente murcho — prova de que eu estava “carregada de mau olhado” — ao final da reza.

Ateia como sou, vez por outra me pego lamentando não poder mais recorrer às benzeduras de Elza e com muita saudade da alegria que eu percebia na celebração dos Ibeji em sua casa.

Queria ouvir cantar "Cosme e Damião/ a sua casa cheira/ a cravo e a rosa/ e a flor de laranjeira".

Ingredientes para caruru de São Cosme
Quiabo para caruru de São Cosme
Casa de produtos para caruru no mercado da Ceasinha do RioVermelho e Sua Majestade, o quiabo, a estrela da festa


Hoje eu acordei com saudade de Elza, de quem não me ficou nenhuma fotografia, de quem nunca soube o sobrenome e cuja casinha simples, de chão batido, há muito foi varrida por algum trator para dar lugar a um espigão.

Faz mais de 40 anos que Elza partiu para o Orum e não teve como saber o quanto me ensinou sobre a beleza, a força e a generosidade do povo da minha Bahia, nem o quanto eu sou grata por essa lição.

E por falar em generosidade, obrigada à jornalista Rita Tavarez, que cedeu fotos para este post. Valeu, Ritinha!

Atualização em 29/09/2013: para quem perdeu o Caruru de São Cosme, em dezembro tem mais. O mês é dedicado a Iansã, sincretizada como Santa Bárbara, também celebrada com esse banquete afrobaiano. 


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7 comentários:

  1. Que beleza Cyntia! Tudo muito bom, das fotos ao texto. Que Elza esteja com Oxalá! Ana Silvia

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  2. Que delicia de cerimônia, e que bom que são passados pra outras gerações. Obrigada por compartilhar conosco essa bela tradição!

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  3. Nossa Bahia é LINDAAAAA!! O texto é comovente❤️

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  4. Olá!! Eu aqui em pleno 2021 lendo essa maravilha de texto, e lembrando que já participei de um caruru de 7 menino a muitos anos atrás, lá em Salvador. Tempos bons.👏👏

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