30 de setembro de 2011

Coisas que aprendi viajando:
Minha vida de pedestre

Nem todas as cidades são Paris, mas em todas elas
há um bom motivo para se caminhar...
(Palais Royal, Paris, abril de 2006)
Andar a pé e de transporte público, para mim, sempre foi atividade de férias. Sem pressa, estimulada pela qualidade dos serviços de transporte coletivo de outras paragens, encarava os deslocamentos nos ônibus e metrôs como parte da experiência de viajante. Uma das melhores coisas que aprendi viajando foi o prazer de ser pedestre.

Adorava o contato com as ruas, sentir a temperatura e os cheiros da cidade. Perceber os detalhes mais sutis e sedutores. Ouvir o burburinho, os sotaques e os assuntos.

Acabada a folga, de volta à vida normal, lá estava eu atrás do volante, travada nos congestionamentos. Comecei a desgostar da contradição: exatamente nas minhas cidades, com as quais eu deveria ter o contato mais íntimo, eu vivia como turista de excursão. Via as ruas passarem pela janelinha. Ficava atada a uma objetividade de caminhos que não deixava margem para a contemplação ou para a mudança de curso numa esquina inesperada.

Que tal voltar do trabalho com Harry Potter?
(Metrô Cinelândia, Rio, junho de 2011)
Dirigindo, eu contemplava as locações de fora do quadro, sem direito a entender a trama, escutar os diálogos ou desfrutar da trilha sonora. Uma estrangeira, encapsulada no trambolho metálico chamado  automóvel.

É verdade que o transporte público, no Brasil, não é nenhuma maravilha — em muitos lugares, o sistema consegue ser simplesmente horroroso. Mas dirigir nas nossas metrópoles caminha cada vez mais para ser uma opção pior que usar o transporte coletivo.

Os electricos de Lisboa: transporte público também tem charme...
Sei que estou na contramão da euforia econômica — na cabeça do brasileiro, nada expressa melhor o “subir na vida” que a compra do primeiro carrinho. Também sei que quem mora na periferia e quase empata o tempo gasto em deslocamentos com as horas efetivamente trabalhadas não tem como ver o lírico e o lúdico da condição de pedestre.

Mas viver sem automóvel é que deveria ser símbolo de luxo e privilégio, no nosso país. Afinal, os mais aquinhoados — os que moram nos bairros mais próximos do centro e dos locais de trabalho — sofreriam muito menos usando o transporte público do que os que vêm de longe, enlatados nos ônibus que se arrastam nos congestionamentos. Quase tanto quanto pagar imposto, tirar automóveis da rua é contribuir com a justiça social (rss). Sério: por que a minha mobilidade teria precedência sobre a dos moradores da periferia?

Salvador: linda e inviável para pedestres.
(Boa Viagem, Cidade Baixa)
O Metrô do Rio, por exemplo, é desconfortável para quem vem da Zona Norte de manhã e volta para lá no fim da tarde. Quem mora na Zona Sul, porém, tem o privilégio de estar sempre no contrafluxo, na hora do rush. Era meu caso. Aliás, mesmo com o vagão abarrotado, encarar quatro estações entre o Flamengo e a Cinelândia — sete minutos de percurso!! — é muito melhor que ir de carro para o Centro, irritar-se no congestionamento e penar para estacionar.

Há 27 meses, resolvi estender minha condição de pedestre-visitante para a de pedestre-residente (queria ter feito isso antes, mas Salvador tem o pior sistema de transporte entre grandes cidades brasileiras). Não é como estar de férias — nosso transporte público, definitivamente, ainda tem muito o que evoluir —, mas posso garantir que estou no lucro. No Rio, eram 20 minutos de casa para o trabalho (menos do que isso, até, se estivesse de salto baixo). Em Brasília, são 30 minutos. Com direito a atravessar o verde cheio de passarinhos da 410 Norte, rumo ao ponto de ônibus. 

Aposentei a angústia de procurar estacionamento...
(Congresso Nacional, Brasília)

Depois que abandonei o carro, meu nível de estresse despencou — eu não fazia a mínima ideia do quanto o trânsito contribuía para minha neurose — e ganhei de presente um contato bem mais próximo com as cidades onde morei.

Descobri vizinhanças e detalhes que jamais imaginei que existissem — outro dia, tropecei num sebo ótimo, na 409 Norte... 

Aprendi a ir ao supermercado com meu carrinho de feira  — é incrível a quantidade de supérfluos que se deixa de consumir quando se sabe que vai ter que arrastar as compras até em casa. 

Aposentei os shoppings: ninguém merece a claustrofobia quando começa a perceber as opções que em torno de casa, invisíveis para quem usa o carro até para ir à padaria.

Encaro meus deslocamentos diários como pedacinhos de férias, pequenos presentes que me dou. Pedestre, percebo melhor a cidade, suas virtudes e defeitos. Os caminhos são a vizinhança, e não a rota a ser cumprida com indiferença. Estou cada dia mais cúmplice do meu entorno.  E devo ter perdido uns quatro quilos, desde que vendi o carro...

Atualização (em 30/09/2013): se você curtiu essa postagem, acompanhe o registro fotográfico das minhas andanças cotidianas no Facebook e no Instagram, pela hashtag #vidadepedestre

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4 comentários:

  1. Perfeita descrição, é exatamente isso, apenas uma observação: o concurso de pior transporte público do Brasil não é de fácil "premiação", o páreo é duríssimo entre Salvador e Brasília, creio que esta consegue ser ainda pior que a soterópolis... rsrs mas sempre vai depender de onde a pessoa mora e trabalha. Como escolhi morar aqui em bsb, posicionei-me em local estratégico para a labuta logística diária... rsrsrs

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    1. É um campeonato meio perverso, esse da má qualidade do transporte público, mas acho que Salvador ganha fácil. Em Brasília é ruim, mas suportável, para quem vive no Plano Piloto.

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  2. Depois que fui embora de Salvador, vendi meu carro e estou muito mais feliz com minha vida de pedestre na minúscula cidade onde moro, em Santa Catarina. Apesar da minha atual cidade (Joaçaba) ser muito pequena, quase todos têm carro ou moto (quando não têm os dois!). Aqui, percebi que carro ainda é sinônimo de status e as pessoas ainda me olham com surpresa quando digo que não tenho e não quero comprar. Economizei com seguro, IPVA, gasolina e manutenção, e acabei ganhando qualidade de vida, além de reverter todas as despesas que teria com um carro, em viagens. Gostei muito do post e das fotos!!!
    Bjs

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    1. Gabriela, não ter carro está me pagando uma viagem grande por ano. Mas o ganho maior é a redução do estresse. A gente só percebe como dirigir na cidade cansa quando abandona o automóvel. Que legal saber que vc também é "do time". Estamos crescendo :)

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