20 de dezembro de 2001

Foz do Iguaçu: beco sem saída


Cataratas do Iguaçu em Foz do Iguaçu
O maior encanto de Foz: as Cataratas


Faz muito tempo que o futuro passou por Foz do Iguaçu. Quem procura os restos do Eldorado prometido pelas obras da usina hidrelétrica de Itaipu, iniciadas em 1974, vai encontrá-los em lugares como o Rincão São Francisco, bairro periférico de onde os antigos barrageiros partem para o exercício do ofício que lhes resta: a travessia de bugigangas compradas no Paraguai, pela Ponte da Amizade.

Foz do Iguaçu é uma esquina. De países, de rios, de culturas. É uma encruzilhada social e econômica. Para os milhares que aqui chegaram querendo construir a barragem, ganhar dinheiro e voltar para casa, Foz virou o beco sem saída da vida de sacoleiro.

Com 258 mil habitantes, Foz do Iguaçu conta com 32 mil empregos formais, que oferecem um salário médio de R$ 656,47. O maior empregador da cidade é o setor de hotelaria e alimentação, com 4,6 mil postos de trabalho formais (Dieese-Paraná, 2000). A grande alternativa de ocupação é atuar como comprista, trazendo mercadorias de Ciudad del Este, do outro lado do Rio Paraguai.

Às quartas e sábados, os dias mais movimentados, a Ponte Internacional da Amizade tem a monótona semelhança com as estradas da guerra: uma multidão de sacolas, malas, caixas e embrulhos, muitas vezes sustentada por gente que teima em carregar mais que o próprio peso. Além da imensa procissão de sacoleiros pedestres, uma média diária de 150 ônibus e incontáveis automóveis, vans, táxis e motos completam o quadro de interminável hora do rush.

Tubarões e formigas - Como resultado desse trânsito, a Delegacia da Receita Federal (DRF) em Foz do Iguaçu contabilizava US$ 4,16 milhões em mercadorias apreendidas, até 20 de dezembro do ano passado. Se o valor não chega a espantar, o volume é considerável: 70 mil caixas-padrão foram utilizadas pela Receita para acondicionar os objetos apreendidos. (Uma caixa-padrão tem aproximadamente 70 cm de altura, 50 de largura e 50 de profundidade). No galpão da DRF, os pacotes de cigarro de segunda linha, as garrafas de bebida barata e as latas de Nescau e leite em pó formam pilhas que chegam até o teto.

"Quase tudo que se apreende na Ponte da Amizade são quinquilharias", reconhece o delegado local da Receita, Mauro de Brito. Coisa de "formiguinhas" (pessoas que fazem o transporte "artesanal" das mercadorias), como atestam os sete mil processos por contrabando e descaminho que devem se transformar em representações ao Ministério Público: 90% dos envolvidos estão desempregados. Esse "aspecto humanitário" fomenta a oposição de políticos e comerciantes à ação da Receita.

Os mesmos processos, porém, dão a pista de que, por trás das "formiguinhas", estão os tubarões. "Onde esses desempregados conseguem os dólares para fazer as compras? Mesmo que os sacoleiros respeitem as cotas de US$ 150 por pessoa, a cada mês, já é muito dinheiro", comenta um AFRF aduaneiro.

Mauro de Brito admite a existência de uma rede agenciadora de sacoleiros, meros "laranjas" na importação irregular de mercadorias. Ele não descarta a necessidade de investigar os graúdos "no momento oportuno", mas considera essencial manter a fiscalização e a repressão ao varejo praticado por passageiros de ônibus e pedestres, postura que já lhe rendeu o título de persona non grata na cidade, conferido pela Câmara de Vereadores de Foz, no último mês de novembro.

A repressão ao "contrabando de varejo" em Foz do Iguaçu rende à Receita Federal muitos desafetos na cidade. E as hostilidades não se expressam apenas em títulos de "persona-non-grata", como o conferido pela Câmara de Vereadores ao delegado da instituição, Mauro de Brito, em 2001. É comum o confronto entre os comboios de sacoleiros -- às vezes, mais de 30 ônibus -- e a fiscalização.

Em dezembro de 2001, o líder dos desafetos da Receita em Foz do Iguaçu é o presidente do Sindicato dos Caminhoneiros Autônomos, o vereador e presidente da Câmara Municipal, Dilto Vitorassi. Sua bronca com a instituição e com os servidores é antiga. Em 1998, ele liderou o encurralamento e as ameaças a auditores e técnicos da Estação Aduaneira, que realizavam uma operação padrão.

"Onde já se viu uma greve onde os caras nem paralisam nem trabalham?", esbraveja, ao lembrar-se do episódio. Questionado se sua condição de dirigente sindical não obrigaria a respeitar a decisão soberana de uma categoria por determinada forma de luta, o vereador perdeu as estribeiras. "Eu não aceito esse negócio de operação padrão".

Agora, a fúria de Vitorassi é contra a Operação Fim de Ano da Receita, iniciada em 14 de novembro. A intensificação da fiscalização sobre os compristas rendeu dois incidentes graves. No primeiro, um comboio de ônibus de sacoleiros amotinou-se contra fiscais da Receita e policiais federais e rodoviários que selecionaram cinco ônibus, aleatoriamente, para inspeção. "Foi um caos no meio da estrada", conta um auditor. "Aquele monte de gente gritando, nos cercando, partindo para cima". Os carros oficiais foram apedrejados, os ônibus não foram fiscalizados.

Dias depois, numa ação conjunta com a Polícia Federal, fiscais da Receita invadiram o pátio de um hotel onde estavam estacionados alguns ônibus de compristas. Nem os apartamentos do estabelecimento foram poupados da revista, que resultou na farta apreensão de enfeites natalinos, brinquedos eletrônicos e latas de leite em pó.

A invasão do hotel teve grande repercussão na cidade. O delegado da Receita, Mauro de Brito, alega que a instituição agiu de acordo com a lei. "As batidas nos hotéis vão continuar, porque esses estabelecimentos funcionam como guarda-volumes. Nós respeitamos a privacidade dos quartos com hóspedes registrados, mas muitos apartamentos abrigavam apenas mercadorias". Brito lembra que a Receita não precisa de mandato judicial para agir: "Cumprimos nossa obrigação institucional", afirma.

"Foi um exagero", discorda um auditor. "Isso só serviu para piorar a nossa imagem na comunidade". Já o delegado credita a insatisfação da comunidade local com a ação da Receita a um "mau costume: o Estado esteve ausente dessa questão por muito tempo aqui em Foz".

Esse "retorno do Estado", entretanto, ainda deixa a desejar. Segundo o próprio Brito, as vendas de mercadorias em Ciudad del Este estão estimadas em US$ 1,5 bilhão por ano. Isso equivale a 10 milhões de cotas de US$ 150, que é o que cada pessoa pode trazer, por mês, do Paraguai, enquanto a cidade registra um movimento de um milhão de turistas por ano.

Além das quinquilharias, eventualmente apreendem-se drogas, como os 15 quilos de cocaína flagrados com um sacoleiro, na Ponte da Amizade. Em 2000, o volume de cocaína apreendido ficou em 1,5 tonelada. Não é páreo para uma única apreensão feita na zona secundária, no ano passado: um caminhão trazia 12,5 toneladas de maconha. Foi pego por uma denúncia anônima, antes da parametrização da carga no Sistema Informatizado de Comércio Exterior (Siscomex).

Enquanto comerciantes e políticos reclamam da "covardia da Receita" em reprimir sacoleiros e o delegado dá seguidas entrevistas louvando a ressurreição do Estado, auditores e técnicos da Receita colocam o pescoço na guilhotina todos os dias. "Eu morro de medo", conta um técnico. "Esse espalhafato pode fazer bem à carreira do delegado, mas sou eu que tenho que chegar em casa, muitas vezes tarde da noite, olhando para todos os lados, receando alguma violência".

O que parece uma relação desigual entre o "Estado desalmado" contra as "formiguinhas", visto de perto não é tão simples. "Enfrentar um comboio é barra pesada", conta um auditor. Os comboios foram a forma encontrada pelos ônibus dos compristas para dificultar a fiscalização. São dezenas de veículos trafegando juntos, com a certeza de que apenas um ou outro poderá ser parado, escolhido por amostragem.

O tamanho do risco foi comprovado em 14 de dezembro, quando os servidores da Receita e da Polícia Federal foram cercados, ameaçados e apedrejados por centenas de compristas que integravam um desses comboios. Desde essa data, a repressão aos comboios aumentou. "Nós estamos contrariando interesses poderosos, não estamos mexendo só com sacoleiros pobres, tem coisa grande por trás", acredita um auditor. "Não temos equipamento nem segurança. É um risco viver e trabalhar em Foz do Iguaçu".

Publicada originalmente na revista Conexão- Unafisco Sindical




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